Por Jorge Fernandes Isah
9. A regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Portanto, sempre que houver dúvida quanto ao verdadeiro e pleno sentido de qualquer passagem (sentido este que não é múltiplo, mas um único), essa passagem deve ser examinada em confrontação com outras passagens, que falem mais claramente.20
20 II Pedro 1:20-21; Atos 15:15-16
Primeiro, definamos o significado de interpretar, cuja origem vem do latim "interpretari", o qual quer dizer aclarar, explicar ou dar o sentido a algo, no nosso caso, ao texto bíblico. Então, de certa forma, todos nós somos interpretes, aqueles que, através da leitura do texto sagrado, apreenderão o seu significado, a sua mensagem. Como já foi dito, temos de ter o cuidado de não reescrever o texto, dando-lhe um sentido que Deus não quis dar. Isso acontece comumente por causa das nossas limitações, mas ainda mais habitualmente [o que não quer dizer que seja uma prática normal, correta] porque queremos que o texto concorde com o que pensamos, com o que cremos. A ideia de que somos "livres-interpretes" é falsa, pois o texto não pode ter uma significação pessoal, como Pedro nos diz: "Sabemos primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação" [2Pe 1.20].
Alguém poderá dizer que o apóstolo se refere apenas às profecias, mas o fato é que as profecias são relatos, revelações de Deus ao homem, o que inclui, ao meu ver, todo o escopo da Bíblia, ainda que particularmente nos atentemos ao seu caráter de prever acontecimentos futuros. Quando a Bíblia diz: "A alma que pecar, essa morrerá" [Ez 18.20], temos um princípio, o de que o pecado levará inevitavelmente à morte, e uma profecia, a de que os pecadores morrerão [numa afirmação para o tempo futuro, para aqueles que ainda viriam, sem se esquecer de que ela já se realizara também no passado]. Então, profecia [lat prophetia] significa igualmente anunciar e interpretar a vontade e os propósitos divinos; profetizar é anunciar o Evangelho, o que todos os cristãos são chamados a fazer, logo, todos somos profetas.
O cuidado e zelo ao nos dirigirmos ao texto bíblico está ligado ao temor de preservá-lo em nossa mente e coração da forma como Deus nos entregou. Como já disse, todos temos acesso à Escritura, mas com a responsabilidade e vigilância para não colocar aquilo que ela não diz, nem tirar o que ela diz. Nós somos os seus guardiões secundários, pois Deus é o seu guardião principal e, por ele, ela se manterá intacta e perfeita em sua missão de nos revelar fiel e verdadeiramente a sua mensagem. O que não nos exime da vigília contínua em resguardá-la inalterada, incorrompida. De forma que a Bíblia é autossuficiente em si mesma, sem depender de nada ou ninguém além do seu autor, o Espírito; e será sempre ele quem guiará os leitores ao correto entendimento e interpretação da verdade. Mas, para isso, é necessário que o leitor seja regenerado, sua mente transformada, pois há uma venda que cega os olhos espirituais do homem natural, e assim a interpretação correta torna-se impossível, e a sua compreensão inatingível, sendo essencial que ela seja retirada, e isso somente acontecerá pela obra e ação direta do Espírito Santo, dando o novo-nascimento, sem o qual ninguém poderá ver o reino dos céus [1Co 2.14; 2Co 3.14-15].
Creio que este ponto esteja bastante claro, e foi afirmado e reafirmado desde a primeira aula: a Bíblia é autointerpretativa, ela se explica a si mesma, e, para tanto, ela deve ser estudada, e nela devemos meditar para que encontremos a resposta para as eventuais dificuldades que examinamos. Mas nada disso será possível ao homem natural, pois tem os olhos cegados para a verdade. Somente o Espírito Santo pode abrir os olhos ao "morto" e trazer-lhe à vida, ao ponto de, somente assim, ele ser capaz de compreender a mensagem divina. o que nos torna ainda mais responsáveis diante de Deus, pelo dever de clamar e suplicar que ele nos dê a capacidade de entendimento constante, a capacidade de, iluminados pelo Espírito, crescer na compreensão da Escritura.
Com isso, o que se quer dizer que nem as ciências humanas, nem a intuição espiritual ou novas profecias, nem a tradição, ou decisões eclesiásticas, podem ser o ponto pelo qual determinado texto venha a ser clarificado e interpretado. Esse é um princípio definido sabiamente pela C.F.B., de maneira que ninguém está autorizado a explicar o sentido de determinada passagem com base em outros fatores que não seja o próprio texto bíblico; de maneira que ela dará um ensino geral e uniforme, não podendo contradizer a si mesma, pois ela é uma unidade harmônica e coesa.
Não estou excluindo absolutamente o conhecimento humano quanto aos métodos de ensino e aprendizado das línguas originais ou de hermenêutica [a palavra origina-se do grego "hermēneuein" que significa interpretar, esclarecer, e traduzir. É o ramo da filosofia que estuda a interpretação de textos, ou melhor, através dela determinado texto é levado à compreensão], que podem auxiliar no entendimento e compreensão do texto bíblico.
A questão então passa a ser: qual a forma correta de interpretação do texto sagrado?
Muitos alegam, como Orígenes, um dos pais da igreja de Alexandria, que antes de trazer um sentido literal para o texto bíblico devemos "espiritualizá-lo", pois este é o seu objetivo primário. Em outras palavras, ele quis dizer que o sentido literal era coisa para neófitos, iniciantes, e que o sentido espiritual ou alegórico era para os maduros na fé[1].
A palavra alegoria origina-se do grego "allegoría", e significa "dizer o outro", que é o mesmo que dar outro sentido ao sentindo literal, dizer algo diferente do sentido literal. Dá-nos a ideia de que a verdade está alegoricamente oculta, e de que entendê-la literalmente, na superfície, seria uma forma "inferior" de se aproximar de Deus. Em outras palavras, o método alegórico afirma não haver o ensino direto na Escritura, mas formas subliminares e subentendidas somente perceptíveis por aqueles que sejam superiores espiritualmente para buscá-las e encontrá-las. O que acontece é a distorção e corrupção da verdade, e uma presunção que torna o interprete em um analfabeto, incapaz de ler no texto a mensagem real e verdadeira de Deus.
Infelizmente este método antigo de interpretação está mais vivo hoje do que esteve à época de Orígines. Muitos pastores e líderes cristãos se espelham nesse ensino para fazerem-se mais espirituais aos olhos do seu rebanho. Com isso eles ganham autoridade e a capacidade de manipular o texto bíblico ao seu bel-prazer, conforme os seus interesses imediatos, revelando o pensamento e a mente do homem ao invés do pensamento e a mente do Autor, o Espírito Santo.
Um mesmo objeto, por exemplo, a água, pode significar coisas diferentes para intérpretes diferentes. O dilúvio, pelo qual o mundo sucumbiu pela água, poderia significar coisas díspares como a destruição do mundo, o julgamento de Deus sobre a humanidade, porque "a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente" [Gn 6.5]; ou o batismo regenerador, através do qual a água tem poderes de efetivamente apagar e limpar o homem dos seus pecados. A arca de Noé, em outro exemplo, pode significar dois eventos: para Agostinho [que as vezes tinha rompantes alegoristas] as suas medidas eram idênticas às medidas do corpo humano, simbolizando a Igreja, o Corpo de Cristo. Para Hipólito de Roma, a mesma arca significava o Cristo, o Salvador que haveria de vir.
Há também uma sensível diferença entre as parábolas de Cristo e a alegorização. Uma coisa é o Senhor utilizar-se de analogias e figuras de linguagem para ensinar seus discípulos a verdade. Outra coisa é utilizar-se do método de alegorização para dar um sentido irreal [e mesmo vários sentidos irreais] a tudo que é real no texto. A Bíblia se utiliza de figuras, tipos e alegorias, como maneira de, didaticamente, transmitir e ensinar a verdade, algo real. Vejamos alguns exemplos:
a) Rm 5.14: "No entanto, a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles que não tinham pecado à semelhança da transgressão de Adão, o qual é a figura daquele que havia de vir" - Adão é um tipo de Jesus, demonstrando que o nosso Senhor e Salvador tem também as características humanas de Adão, a exceção da natureza pecaminosa [Assim como Moisés é tipo do Senhor, como o libertador do povo de Deus];
b) 1Co 10.1-6: "... E estas coisas foram-nos feitas em figura, para que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram" - Fatos históricos, acontecimentos, servem-nos de figuras, de representação, exemplos que devemos seguir, e muitos que devemos evitar.
c) Gl 4.21-26: "... O que se entende por alegoria; porque estas são as duas alianças; uma, do monte Sinai, gerando filhos para a servidão, que é Agar..." - Paulo, inspirado pelo Espírito, através dos personagens históricos, Sara e Hagar, alegoriza as duas alianças.
O fato da Bíblia se utilizar desses elementos com o objetivo de ilustrar algumas verdades, respeitando-se o texto, o contexto e a intenção do autor, não nos dá o direito de considerar que toda a verdade será compreendida a partir da alegorização, no abandono da interpretação literal. Isso seria alterar e corromper o sentido que o autor quis dar ao texto, fazendo-o dizer o que ele não disse. Por isso, há a necessidade de se utilizar sempre na leitura da Escritura o método gramático-histórico, a busca do sentido literal, observando-se as regras gramaticais e o período histórico no qual foi escrito. Em outras palavras, a melhor forma de se ler o texto bíblico é ater-se ao seu sentido simples e evidente, a fim de não se cair na armadilha da alegorização, que não passa de uma forma pretensamente superior e espiritual de interpretação, mas que revela pouco ou nenhuma espiritualidade; revelando não o Espírito da verdade, mas o espírito do erro [1Jo 4.6].
Portanto, quando nos aproximarmos da Escritura devemos fazê-lo em busca da verdade, pois somente ela nos interessa, ou seja, ouvir, compreender a voz de Deus, para assim conhecer a sua vontade, obedecê-lo e servi-lo para a sua honra e glória, e para a nossa edificação e santificação. De forma que não nos interessa conformá-la ao nosso pensamento, mas ter o nosso pensamento conformado a ela, sujeitando-nos ao sábio e perfeito conselho divino.
[2] Resumo da aula realizada na E.B.D. em 05.11.2011
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