Página de doutrina Batista Calvinista. Cremos na inspiração divina, na inerrância e infalibilidade das Escrituras Sagradas; e de que Deus se manifestou em plenitude no seu Filho Amado Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, o qual é a Segunda Pessoa da Triunidade Santa

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 23: O conhecimento e a presciência de Deus




Por Jorge Fernandes Isah



INTRODUÇÃO
Atributos comunicáveis são os atributos divinos que podemos encontrar, ainda que em graus muito menores, em nossa personalidade. Como está escrito no livro de Gênesis, Deus nos fez à sua imagem e semelhança, de forma que nos deu algumas características de sua pessoalidade, não no sentido de serem idênticas às nossas mas de, através delas, nos identificarmos com o ser pessoal que ele é. Vemos em nós, ainda que por sombras, aquilo que ele é; ainda que diferentemente de nós ele seja santo, perfeito e eterno. Por isso falamos dos atributos comunicáveis como aqueles que definem Deus como o ser pessoal. Entendo, contudo, que é difícil, e mesmo impossível, distingui-lo em sua pessoalidade, como se fosse possível ele ser parcialmente pessoal ou parcialmente impessoal em seus atributos. Deus, na verdade, é pessoal em todo o seu ser, em todos os seus atributos, mesmo nos que não são considerados comunicáveis. Afirmar que esse ou aquele atributo é mais pessoal do que outro parece-me uma distorção, como se pudêssemos fragmentá-lo ou dividi-lo no que não pode ser fragmentado ou dividido. Esta divisão serve para entender melhor aquilo que é por demais grandioso, maravilhoso e inescrutável ao homem: a divindade em todos os seus aspectos eternos, infinitos e imutáveis.

Quando consideramos o que definiu-se por "comunicáveis", não podemos esquecer de que eles também são, em sua perfeita unidade, "incomunicáveis", no sentido de serem infinitos, eternos e imutáveis como é todo o ser de Deus. De sorte que, falar em pessoalidade de alguns atributos poderá induzir ao erro de se considerar outros como impessoais; mas sendo o ser de Deus completamente perfeito, essa distinção faz-se desnecessária e, até mesmo, inadequada.

Ainda que se diga que os atributos incomunicáveis apenas assinalam ou evidenciam o ser absoluto de Deus, enquanto os comunicáveis o ser pessoal, fica-nos claro que isso é algo impossível do ponto de vista da unidade e exclusividade divina, a qual não pode ser dividida nem mesmo para efeitos meramente didáticos.

Não estou dizendo que certas classificações não sejam de providencial e prudente ajuda no entendimento e compreensão do ser divino; não é isso. Mas que a ideia de pessoalidade em alguns atributos pode ser mais danosa para esse entendimento do que auxiliadora. Por mais que se não queira, é inevitável, por nossa limitação e imperfeição, uma certa "dissecação" do ser absoluto e supremo; porém, em alguns aspectos ela não traz nenhum dano à compreensão, mas aqui, penso, ela pode ocasionar sérios desvios e distorções levando mesmo à incompreensão.

Sendo ele absoluto, o causador de todas as coisas e pelas quais deu-lhes a existência, Deus se relaciona pessoalmente com a Criação, ou melhor, com suas criaturas. Porém, não devemos esquecer de que Deus é um ser pessoal em si mesmo, onde subsistem três pessoas, que se interrelacionam eternamente, mesmo havendo o carater de subordinação entre elas, sem que haja desigualdade, mas uma igualdade perfeita e santa. Qualquer tentativa de se definir Deus, portanto, como um ser impessoal é, em si mesma, falsa; ainda que não houvesse nada criado, pois nele mesmo encontramos a personalidade perfeita da qual somos meros reflexos imperfeitos e finitos. O que nos leva novamente a questionar qualquer tentativa de entender a pessoalidade divina a partir do homem e suas relações. Elas nos auxiliam como elementos díspares, quase em oposição ao que Deus é, ainda que haja resíduos divinos nos seres criados; mas devemos ter a consciência de que o nosso carater e relacionamentos estão anos-luz de qualquer semelhança ao carater e pessoalidade divinas. A referência ao homem como um ser pessoal deve-nos levar a reconhecer que, como criaturas finitas e limitadas, criados pelo Deus absoluto, temos que ele é também pessoal, mas de uma pessoalidade superior, infinita e perfeita, ao contrário de nós.

Nada disso seria possível se Deus não se quisesse revelar ao homem como o ser pessoal, e, para tanto, temos como base e testemunho a Escritura Sagrada, na qual lemos, desde o início, Deus se relacionando com as suas criaturas. E, nela, encontramos a melhor definição sobre o ser de Deus: ele é Espirito; a quem ninguém pode ou poderá ver, mas, em sua misericórdia e bondade, aprouve a ele nos dar a conhecer pelo seu Filho Amado, o qual poderemos olhar, tocar, abraçar, pois é o Verbo encarnado, a segunda pessoa da Triunidade Santa, e que é a perfeita imagem divina. A ele, Deus eterno e Todo-Poderoso, mas também Todo-Amoroso para com o seu povo, honra e glória eternas!

O fato de Deus estabelecer princípios morais e de obediência nos leva a reconhecer nele a suprema pessoalidade, na qual somos guiados a, voltando-nos para ele, buscar sermos como ele é. Por isso há inúmeras exortações quanto à santidade: sede santo como é santo o vosso Pai. Somos exortados e orientados pelo próprio Senhor a sermos pessoalmente como ele é. Claro que a referência não é a sermos como Deus, em sua unidade e intereza, mas a sermos integralmente santos, retos e justos como ele é. O carater santo, reto e justo, no qual devemos almejar, mostra-nos que somente assim é-se possível relacionar-se com o Criador e compreender essa "faceta" maravilhosa da sua pessoalidade, ainda que o termo "pessoa" não seja aplicado na Bíblia a Deus. Contudo a ideia de o ser pessoal é verdadeira, sendo explicitada na criação do homem, mas, especialmente, na salvação providenciada pelo próprio Deus, realizada na expiação do Filho eterno, Jesus Cristo, que propiciou aos eleitos relacionarem-se definitivamente com Deus, revelando-o através de si, como a imagem fiel e perfeita, de forma que pudéssemos conhecê-lo e termos nossos caracteres moldados à sua semelhança. E aquilo que é pessoal somente em Deus, santidade e justiça plenas, também o será em nós, por sua obra realizada [mas, para nós, está em processo de realização].


ATRIBUTOS INTELECTUAIS DE DEUS

1) O Conhecimento de Deus
Pode-se defini-lo como sendo a perfeição de Deus pela qual ele conhece a si mesmo e todas as coisas num único ato eterno e simples. Com isso se quer dizer que o conhecimento divino é abrangente, exaustivo, infinito e simultâneo, de maneira que nada lhe escapa, nem se lhe apresenta progressivamente, e de que o seu conhecimento vai além das coisas criadas. Sabiamente o salmista diz: "Grande é o nosso Senhor, e de grande poder; o seu entendimento é infinito" [Sl 147.5]. O profeta também diz: "Ai dos querem esconder profundamente o seu propósito do Senhor, e fazem as suas obras às escuras, e dizem: Quem nos vê? E quem nos conhece?" [Is 29.15], e, ainda: "Não sabes, não ouviste que o eterno Deus, o Senhor, o Criador dos fins da terra, nem se cansa nem se fatiga? É inescrutável o seu entendimento" [Is 40.28].

Diferentemente de nós que temos o conhecimento limitado e parcial ao que vemos, tocamos, podemos mensurar ou verificar, Deus tem o conhecimento exaustivo e infalível de tudo [onisciência]. Muito antes do mundo vir a existir, Deus já o conhecia. Muito antes de sermos criados, ele também já nos conhecia. Todos os fatos, em seus mínimos detalhes, não lhe escapam, pois foi pela sua vontade que eles vieram a existir. E a vontade divina não está presa a nada nem ninguém. Não podemos dizer que Deus age conforme o curso das coisas se desenrolam, à medida em que acontecem, para então definir o passo seguinte. Não. Deus preordenou tudo o que acontece, por sua livre vontade, a qual produz o seu conhecimento. Não numa sequência como a descrita, primeiro a vontade, depois o conhecimento, isso é fruto da limitação humana que, presa ao tempo, não consegue orientar-se fora dele. Deus tem vontade e conhecimento simultâneos, jamais progressivamente, pois ele vê as coisas de uma vez em sua totalidade, ainda que o próprio conceito de simultaneidade esteja atrelado à ideia do tempo, a qual é exterior ao ser de divino, não exercendo nenhuma influência sobre ele.

Deus conhece a si mesmo, o que se chama de "conhecimento simples". É o conhecimento que Deus tem de si sem fazer nenhum esforço para se conhecer. É o conhecimento próprio, inerente, e não se desdobra em conhecimento progressivo. Deus sempre se conheceu completamente, sem a necessidade de, como o homem, conhecer-se progressivamente, através da observação e do aprendizado de si mesmo e dos seus semelhantes; um conhecimento adquirido, empírico. O homem é, em muitas fases da vida, ignorante de si. É possível que passados anos e anos ele não tenha o conhecimento de si, pois sempre os terá incompletos, e, muitas vezes, incompreensíveis [por conta da finitude humana, mas também do pecado que afetou a nossa mente, corrompendo-a]. Ainda assim, o que conhecemos de nós somente é possível pelo favor divino, de nos dar o seu Espírito, "para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente" [1Co 2.12]. Quanto a Deus, ele não ignora nada do seu ser e natureza, de forma que sabe tudo a seu respeito, pois, assim como Deus é eterno, o seu conhecimento também é, sendo completamente imune à ignorância. Deus não aprende nem adquire conhecimento; ele tem todo o conhecimento, pois ele depende apenas de si, e tão somente de si, e não das coisas criadas, para saber como elas são, muito antes de serem. Ele anuncia o fim desde o princípio [Is 46.10], e lhe são conhecidas, desde o princípio do mundo, todas as suas obras [At. 15.18], e, então, temos a afirmação bíblica de que o conhecimento divino é eterno.

Deus sabe tudo sobre tudo, ele tem o conhecimento perfeito e completo de todas as coisas. Ele conhece todos os eventos, passados, presentes e futuros, bem como o que se passa no coração do homem, seus propósitos e atos. Nada escapa aos olhos de Deus, nem algum lugar pode estar escondido dele. É o que o salmista diz: "Senhor, tu me sondaste, e me conheces. Tu sabes o meu assentar e o meu levantar; de longe entendes o meu pensamento... Para onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua face? Se subir ao céu, lá tu estás, se fizer no inferno a minha cama, eis que tu li estás também" [Sl 139.1, 7-8]. Nada, nem mesmo os pensamentos mais insignificantes podem ser ocultados de Deus. Tudo se apresenta diante dele, o que é e o que há de ser, mas também o que foi e o que não. É o que o apóstolo nos diz: "E não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas" [Hb 4.13]. Ora, se Deus conhece a si mesmo que é infinito, como não poderia conhecer o que é finito? 

2) PRESCIÊNCIA DIVINA
A presciência divina não é apenas uma antevisão, adivinhação ou simplesmente "ver o futuro". Deus não é um mero espectador como quando nos posicionamos diante de uma tela, passivamente, a ver um filme. Deus conhece o futuro, assim como conheceu o passado e conhece o presente, porque para ele o tempo está sempre diante de si. Vejamos o exemplo de um rolo de filme [já que as trilhas dos dvds não são visíveis aos olhos humanos]: o filme se compõe de quadros que rodados a certa velocidade dá-nos a imagem correta do evento que ocorreu. Podemos ver um quadro e ali uma cena. Mas aquele quadro não poderá nos revelar todo o desenrolar da película. O filme será sempre uma apreensão do passado, de algo que já aconteceu [mesmo um filme futurista será passado diante do espectador]. Os quadros, individualmente, não representam o filme. À medida que eles se sucedem, compreendemos o que ocorreu. Se pularmos diretamente para o final, na maioria das vezes não compreenderemos o seu desenrolar. Se apenas iniciássemos-lo, não saberíamos do que se trata. Deus não vê dessa forma. Fazendo uma analogia, ele seria uma espécie de diretor que, antes mesmo de iniciar a gravação do filme, já conhece todo o seu enredo. O fato é que muitos diretores não são os autores do texto, e é comum que os diretores interfiram no curso da história à medida em que o filme é produzido. No caso de Deus, ele é o autor do enredo e aquele que propicia, infalivelmente, que o enredo aconteça sem modificações. Ele elaborou e executou todo o projeto, do seu início ao seu final, sem alterações ou ajustes. Por causa da sua imutabilidade e todo-poder, muito antes do mundo vir à existência, Deus já o conhecia como ele é.

O significado disso é que os defensores da “scientia media” estão enganados, e defendem uma base que não é bíblica. Originariamente criada por teólogos jesuítas, e posteriormente adotada pelos luteranos e remonstrantes [arminianos], eles defendem que Deus elegeu e escolheu pessoas a partir do conhecimento de que elas, no futuro, teriam fé e se arrependeriam, vindo a serem salvas. Mas, pergunto: como pode o Deus perfeito, sábio e imutável deixar-se conduzir por aquilo que suas criaturas fazem ou deixam de fazer? Se Deus age segundo a vontade de suas criaturas, temos que ele não tem sua vontade livre, e a tem “presa” à das suas criaturas. A tentativa dos adeptos da “scientia media” é harmonizar a doutrina da predestinação e eleição divinas [leia-se, soberania de Deus] com a do livre-arbítrio humana [leia-se, soberania humana]. Mas fato é que a Bíblia nos revela a vontade e poder soberanos de Deus e, em nenhum momento, revela que o homem tenha uma escolha livre, indiferente ou arbitrária, capaz de leva-lo tanto a escolher uma como outra proposição contrária. Se atentarmos que causas internas [a natureza caída, por exemplo] e externas nos levam a tomar certas decisões, temos que o homem não possuí o livre-arbítrio ou a liberdade da indiferença, pois ela somente pode acontecer em um ambiente de completa neutralidade interna e externa, o que é impossível.

O erro está em se considerar como necessário para a responsabilidade humana que ele seja livre, mas a questão do sentido de liberdade, se para isso será obrigatório que as decisões humanas sejam indeterminadas, nos levaria a descrer e colocar em dúvida a onisciência divina, pois mesmo Deus, seria incapaz de saber eventos que não sejam claramente determinados. Não haveria, por exemplo, a certeza de que as profecias se realizariam. Então, temos duas proposições lógicas que se contradizem, e tentar harmonizá-las implicará no absurdo da ilogicidade. Afirmar que Deus elegeu homens para a salvação por conta daquilo que eles viriam a fazer, ou seja, por seus próprios esforços e méritos, é enganoso e anti-bíblico. Sabemos que o homem somente pode vir a Deus se ele quiser. Não é algo que se possa querer antes de Deus operar a regeneração e tirar-lhe a venda dos olhos. Deus é quem os abre, levando-os à luz do Evangelho de Cristo, e, então, somente então, eles têm a fé suficiente para o arrependimento. 

Arthur Pink diz que o termo presciência não é simplesmente um mero pré-conhecimento de eventos futuros. Ele liga o termo ao fato de que Deus não tem, primeiramente, presciência de eventos contingentes, para depois eleger as pessoas, mas ele tem o pré-conhecimento de pessoas, antes de tudo. Em todas as passagens do Novo Testamento onde o termo é encontrado não há referência alguma a atos humanos, mas a homens. A presciência divina não se refere a ações; e a predestinação e eleição não são consequências da presciência, não são causadas por ela, mas esta decorre daquelas. Nas passagens a ordem é muito clara: Deus prevê que os que predestinou e elegeu ouvirão infalivelmente o Evangelho e se converterão. Não estudarei uma a uma dessas passagens, mas as citarei para que se possa analisá-las e confirmar a assertiva de Pink; são elas: Atos 2.23; Rm 8.29-30 conforme Rm 11.2 e 1Pe 1.2. A ordem correta dos eventos na Escritura é fundamental para que se não retire a glória de Deus na salvação do homem, colocando-a indevidamente no próprio homem. Quando este é quem determina a predestinação e eleição divinas, passa-se a ter uma salvação meritória, por haver no homem alguma coisa boa, seja prevista ou concretizada, que levará Deus a se compadecer e lançar sobre ele a sua graça e misericórdia. Mas quando entendemos corretamente a obra de redenção, reconhecemos que ela é completamente divina, de forma que seremos conformados à imagem de Cristo, à qual fomos chamados segundo o propósito de Deus [Rm 8.28-29]. Deus tem um propósito, de que sejamos a imagem do seu Filho; ele não nos elegeu porque anteviu que seríamos conformes, mas porque nos elegeu é que vislumbrou que o seríamos. Deus decretou primeiro, e sua presciência baseia-se no seu decreto, de forma que, seremos conformados a Cristo porque esse é o propósito divino. 

Resumindo: Deus não previu determinado evento e decidiu tirar dele o máximo possível. Ele ordenou que tais eventos realizassem e, assim, a sua vontade livre e soberana se realizasse na história. Por isso Deus não viu algo que aconteceria e ordenou que acontecesse, mas ele ordenou e ela aconteceu infalivemente, sem chance de não acontecer. E a presciência nada mais é do que a "visão futura" [ainda que o futuro não exista para Deus] daquilo que Deus ordenou, como coisa realizada, líquida e certa.


Notas: 1) Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico em 18.03.2012;
2) Baixe o áudio desta aula em file.MP3
3) O esquema da foto acima foi retirado do site da Universidade Metodista de São Paulo, e me pareceu adequado para resumir como se dá o conhecimento de Deus a partir da visão humana. O conhecimento divino, em si mesmo, é "indemonstrável", pois é infinito, eterno e perfeito. Nenhuma representação é possível, então, optei em representar a forma de como ele estabeleceu que o homem poderia conhecê-lo. Parece-me um esquema equilibrado [ainda que metodista], em que a Bíblia é o centro desse conhecimento, e, somente a partir dela, ele é possível, mas se trata de uma imagem, e nada além disso. Aceitarei críticas ao esquema, caso haja.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 22: A unidade de Deus




Por Jorge Fernandes Isah




INTRODUÇÃO
O que é unidade? Ela é a característica ou qualidade daquilo que é uno, único, indivisível, o qual não se pode separar. Em relação a Deus, este atributo quer-nos dizer duas coisas: 

1- De que Deus é único, não pode ser dividido, pois ele não é constituído por partes, mas o ser integral, coeso, completo, absoluto. Com isso se quer dizer que não há nele nenhum aspecto que se sobressaia sobre outro aspecto, nenhum atributo que se sobressaia sobre outro atributo; que em seu caráter não há nada mais ou menos importante, como se houvesse graus de relevância em seu ser. 

2- De que Deus é exclusivo, de forma que ele é incomparável, excepcional, não havendo outro igual a ele; sendo superior a todos os outros seres, não existindo algo com o qual se possa compará-lo. 

Leiamos Dt 6.4 e 10.14: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”, e: “Eis que os céus e os céus dos céus são do Senhor teu Deus, a terra e tudo o que nela há”.

Temos aqui o resumo do que seja a unidade divina, de que há somente um Deus, e de que ele é o único Senhor. De forma que a ideia politeísta de que há outros deuses é lançada por terra. 

Também é desmentida a ideia de que Deus não é Senhor; no sentido de que ele não exerce seu senhorio sobre a criação, sejam anjos, demônios, homens, o universo, céu e inferno, terra e ar. Especialmente aqueles cristão que defendem a falsa doutrina do não-senhorio de Cristo, encontram-se em maus lençóis diante dessa categórica assertiva bíblica, pois Deus é Senhor de tudo e de todos, sem exceção. 

Veja bem, aqui também temos a ideia ateísta desmoronando-se, pois esse trecho nos revela que Deus existe, e de que ele é o Senhor de todas as coisas, não somente dos crentes, mas de tudo o que há e veio à existência pelo seu poder e vontade. Somente o ser infinitamente perfeito, imutável e santo pode ser uno. Os homens, em contrapartida são constituídos por partes. Temos corpo e alma, mas Deus é Espírito, um só Espírito [Jo 4.24]. 

Com isso não estou defendendo a doutrina unitarista, a qual afirma não haver três pessoas, mas apenas uma pessoa que se manifesta em três maneiras ou formas diferentes. Então, é impossível falar em unidade divina sem se tocar na questão da Trindade [lat trinitate, quer dizer, simplesmente, "três"]. Este termo não está na Bíblia, mas foi escolhido para designar a pluralidade que há em Deus, contudo, ele gera confusão pois remete o ouvinte à ideia de que o Cristianismo é a cosmovisão que acredita haver três deuses, o que é chamado pelos nossos oponentes de triteísmo. Por isso a melhor expressão para definir a unidade divina subsistindo em três pessoas é Tri-unidade, o qual passarei a utilizar. 

O atributo da unidade nos remete à eternidade divina, no sentido de que as pessoas da Triunidade não estavam separadas e se uniram, mas de que Deus sempre foi e é único, a unidade perfeita, um só Deus, mas três pessoas em unicidade. E isso nos afasta do conceito politeísta, ou mesmo a errônea ideia de que a Trindade pode ser comparada com o triteísmo, porque a Bíblia nos ensina o monoteísmo; igualmente, ela não nos ensina também a unicidade, mas de que há três pessoas que não se confundem; porém, isto será objeto de nosso estudo sobre a Tri-unidade Divina, nas próximas aulas, tão logo terminemos o estudo sobre os atributos de Deus. 

O erro está em supor que Deus é um, mas tem apenas uma personalidade. A unidade divina está expressa no fato de que todas as pessoas da Tri-unidade têm a mesma essência, a mesma natureza, mas não quer dizer que elas possuem uma única personalidade. Por isso, na história do Cristianismo, definiu-se que há um só Deus [Deuteronômio 4:35, 6:4, 10:14, Salmo 96:5, 97:9, Isaías 43:10, 44:6-8, 44:24, 45:5-6, 45:21-23, 46:9, 48:11-12, João 17:3, 1 Timóteo 2:5, Apocalipse 1:8, (Oséias 13:4)], no qual subsistem três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo [Mateus 3:16-17, 11:27, 17:1-9, 27:46, João 1:18, 14:16-17. A pré-existência do Filho: Cl 1:13-17, Hb 1:2-3, Jo 1:1], e de que há plena igualdade entre elas .Elas são idênticas em sua natureza e essência, mas distinguidas por características particulares que não são possuídas em comum pelas demais. De forma que o Pai não é o Filho, nem o Filho o Espírito Santo, nem o Espírito o Pai; havendo distinções pessoais dentro da essência divina. Assim sendo, há uma pluralidade em Deus, sem se perder a sua unidade. É o que o Credo de Atanásio diz: “Mas a fé universal é esta, que adoremos um único Deus em Trindade, e a Trindade em unidade. Não confundindo as pessoas, nem dividindo a substância". Cada uma destas verdades é parte daquilo que Deus nos quis revelar de si mesmo, e qualquer doutrina que não se baseie nelas é heresia, fraude e engano.

A UNIDADE DE DEUS COM A IGREJA
Sabemos que Deus é um em unidade, mas também sabemos que ele é um com o seu povo. A partir da união entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo podemos experimentar e viver essa mesma união. É claro que como seres finitos, imperfeitos e pecadores necessitamos desesperadamente da graça e misericórdia divinas para que, limpos do pecado pelo sacrifício do Filho na cruz, sejamos reconciliados com Deus, e assim possamos viver em unidade com ele. 

Este é um ponto que deve ser analisado por dois aspectos:

Primeiro, de que a nossa união com Deus, através de Cristo, se deu antes da fundação do mundo, e por ele mesmo foi concebida e realizada. Não há como, por nós mesmos, nos unir a Deus; foi preciso que ele providenciasse a nossa redenção para que pudéssemos nos unir a ele. Então, como promessa divina, como desejo divino, sem a menor chance de não se realizar, já estamos unidos com Deus eternamente.

Segundo, visto o homem estar preso ao tempo e espaço, e o projeto divino se realiza sucessivamente no decorrer da história, para nós, essa união pode ser sentida, mas não vivenciada constantemente. O pecado, que se manifesta ainda no salvo, é um dos obstáculos para que essa união se concretize definitivamente. Com isso estou a dizer que, para Deus, já estamos unidos a ele, pela obra consumada de Cristo, mesmo antes dele consumá-la no tempo, pois ela é eterna, e a eternidade não é um futuro para Deus, mas um “presente” sempre constante diante dos seus olhos. Segundo o olhar divino, já estamos unidos a ele. Sob a nossa perspectiva imperfeita e limitada, ainda não. Ou seja, estamos incapacitados de reconhecer essa união permanentemente. A carne, em constante luta contra o espírito, obscura-nos os olhos, para que não vejamos a realidade da nossa união com Deus. Mas ela é uma realidade bíblica, senão, vejamos: 

“E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela tua palavra hão de crer em mim; Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste a mim, e que os tens amado a eles como me tens amado a mim” [Jo 17.20-23]. 

Nesta oração do Senhor Jesus, ele pede ao Pai que sejamos, nós, todos os cristãos, em todos os tempos, um com Deus, assim como o Pai é um com o Filho. É claro que o Senhor não está dizendo que seremos “deuses”, nem de que participamos da mesma natureza de Deus. Não é nada disso. Ele está dizendo que estamos unidos a ele porque o seu santo Espírito habita em nós, de forma que Deus é um conosco. Ora, se Deus é indivisível, imutável e infinito, como vimos no estudo da infinidade e imutabilidade divinas, temos que, de uma forma maravilhosa e indescritível, o ser completo de Deus está em cada um de nós, e, assim, estamos completamente unidos a ele. Esta união se dá pelo seu amor, como alvos que somos, e pelo qual ele se manifesta. É algo que se dá pelo poder e vontade de Deus, e da qual não temos nenhum controle ou domínio, apenas recebendo-o como dádiva e bênção para as nossas vidas; um prêmio que não merecemos e jamais mereceríamos. 

Outro ponto que a unidade de Deus nos remete é às suas promessas, assim como as suas promessas nos remetem à unidade divina, de que elas estão em conformidade, em harmonia, unidas em um único propósito de cumprirem a sua vontade; tanto a vontade como as promessas são indissolúveis, indissociáveis, e se realizarão infalivelmente, revelando-nos o Deus único em seus atributos, vontade e obra. 

CONCLUSÃO
A unidade de Deus nos revela que ele é um, único, em sua natureza e substância, sem que a sua pluralidade de personalidades o transforme em um ser composto. Deus é um, subsistindo em três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que não se confundem entre si, mas que numericamente são um Deus. Isso, jamais, poderá nos levar à ideia politeísta de que há um triteísmo no Cristianismo. O Cristianismo é monoteísta, pois não afirma haver deuses, mas somente um Deus.

Assim como Deus é um, e suas pessoas não podem ser separadas, ele também é um com a igreja. O fato de sermos o templo do Espírito Santo, e de o corpo de Cristo, nos revela que já somos um com Deus. Para ele, essa é uma realidade eterna, que nunca deixou de ser ou existir. Para nós, que estamos na carne e lutamos contra o pecado, pode ser como uma ladeira: ora subimos e sentimos que estamos em unidade com Deus, ora descemos e sentimos também que não estamos. A nossa limitação nos impede de viver permanentemente essa realidade, o que acontecerá definitivamente naquele dia em que estivermos diante de Deus, quando não mais haverá o pecado e, portanto, nenhuma venda a ocultá-la dos nossos olhos. 

Por último, esse maravilhoso atributo divino nos dá a garantia de que as suas promessas se realizarão, pois Deus é um consigo mesmo, e sua vontade e ação também são únicas, infalíveis e irredutíveis.


Notas: 1-Aula realizada na E.B.D. em 11.03.2012;
2-Baixe esta aula em file.MP3

sábado, 31 de março de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 21: Objeções à imutabilidade de Deus





Por Jorge Fernandes Isah



Há aqueles que não acreditam no atributo da imutabilidade, confundindo Deus com um ser estático, imóvel. A imutabilidade não implica, jamais, em inatividade, em um Deus imóvel e passivo. Sabemos que Deus é o Senhor da História, de que ele age ativa e incessantemente, de forma que, se não fosse por ele, nada do que existe se manteria e sustentaria. Ele é aquele que sustenta todo o universo, mesmo as partículas invisíveis e muitas coisas que o homem ainda desconhece da criação. Deus é imutável em seu ser e propósitos, o que não quer dizer que ele esteja paralisado, mas que tudo acontecerá conforme a sua vontade imutável, segundo o seu decreto imutável, de forma que tudo é por ele e para ele. Ainda que os planos divinos se desdobrem e se realizem progressivamente no tempo, eles acontecerão conforme a sua imutável vontade, sem que possam ser revertidos, anulados ou modificados.

Quando alguém diz que a imutabilidade é um “engessar” de Deus, ele não entende do que está falando. Deus decretou, ordenou, planejou e executou todas as coisas, sem que elas possam não-acontecer. Jó, mesmo diante do sofrimento pelo qual passava, reconheceu que Deus tudo pode, e nenhum dos seus planos pode ser frustrado [Jó 42.2]. Salomão também compreendeu esse atributo maravilhoso: “Muitos propósitos há no coração do homem, porém o conselho do Senhor permanecerá” [Pv 19.21]. Ainda mais contundente é a afirmação do profeta: “O Senhor dos Exércitos jurou, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará... Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?” [Is 14.24, 27 – ver Is 43.13].

Ele não criou o mundo e abandonou-o. Mas todas as coisas surgem e acontecem pelo seu santo, perfeito e imutável projeto; cada coisa no universo existe, se move e vive pelo agir divino, pelo seu poder infinito de ordená-las. Porém, sempre aparecerá alguém a dizer que Deus mudou ou se arrependeu. Mas o Deus perfeito, infinito, santo e imutável pode mudar? Haveria contradição entre o que ele mesmo afirma em sua palavra e entre o que alguns afirmam? Deus abriria mão da sua imutabilidade, o que vale dizer, da sua divindade, para ser o não-Deus? Por que ele faria isso? E, pode Deus deixar de ser Deus? A verdade é que, como sempre, a compreensão humana está sujeita às falhas e imperfeições naturalmente disponíveis em seu ser. Quando o homem deixa de reconhecer em Deus aquilo que ele mesmo diz de si mesmo para dar vazão às suas elucubrações, como se fosse possível a Deus ser comparado aos homens, as chances de acertos, mesmo mínimos, tornam-se irrisórias. O que muitos fazem é transferir para ele parte da natureza humana, confundindo a linguagem humana, pela qual Deus se deu a conhecer ao homem, com o caráter e a natureza divina.

Os nomes de Deus, que foram estudados algumas aulas atrás, atestam a manifestação divina de várias formas, mas em todas elas, ele permanece imutável. Sendo Criador, Senhor, Salvador, Juiz, Libertador, Providente, etc, Deus se revela aos homens de maneiras diversas, em cada curso da história ele poderá se manifestar através de características diferentes, contudo, permanecendo o mesmo.

Na Escritura encontramos Deus se dando a conhecer a partir de sentimentos e reações humanas, o que se chama de antropopatismo, que nada mais é do que a atribuição a ele de qualidades humanas, ou análogas a outros seres; ele é chamado do “Leão da Tribo de Judá”, Rocha, Pastor, Refúgio. Com isso não se quer dizer que ele seja um mamífero ou um mineral ou uma casa. São recursos de linguagem que o próprio Deus, em sua misericórdia e bondade, se deu a comparar para que pudéssemos conhecê-lo.  O ser divino, como já estudamos, é infinito, infinitamente perfeito, e podemos conhecê-lo limitadamente [ainda que ele se revele fundamentalmente como Deus]. De maneira simples, Deus atribui a si mesmo alguns dos sentimentos humanos, mas que em nada têm a ver com mudança de personalidade, propósito ou natureza. Trechos como os de Gn 6.6-7, Ex 32.14, Jr 18.8-10 e Jn 3.9-10, por exemplo, revelam a imutabilidade divina, ao contrário do que se imaginaria isolando-os e não os relacionando com outras partes da Escritura. O plano ou decreto eterno permanece inalterado, não estando sujeito a variações por conta das circunstâncias; mas dentro do seu plano, Deus mudou de um curso de ação para outro curso de ação, ações essas que são imutáveis, e que foram estabelecidas pelo próprio Deus. Na verdade, a mudança não é em Deus, mas no homem e nas relações que o homem tem com Deus.

No Livro de Jonas, Deus ordenou que os ninivitas se arrependessem do seu pecado, caso contrário, em quarenta dias, seriam destruídos. Ao ouvirem a mensagem do profeta, o rei e o povo se arrependeram, convertendo-se do seu mau caminho, e Deus anunciou que não os destruiria mais. Houve alguma mudança no propósito divino? Não. O trato dos ninivitas com Deus é que mudou, de forma que a ira do Senhor não foi lançada sobre o povo. Mas sabemos que tanto o arrependimento como o desviar-se dos maus caminhos da cidade de Nínive estavam dentro do plano divino. A pregação de Jonas, os ninivitas crendo na palavra profética, e, através da qual se arrependeram, são particularidades que acompanham a ação, o acontecimento, dentro do plano divino, o qual é imutável. Vejam que aqui estão presentes também outros atributos divinos, como a misericórdia, a graça, o perdão de Deus, mas tudo segundo a sua vontade eterna e soberana, de maneira que não haveria como os ninivitas não se arrependerem. Contudo a Bíblia também nos relata sobre povos que foram chamados ao arrependimento e mantiveram-se endurecidos, e sobre eles sobreveio a ira de Deus, consumindo-os. Em nenhum dos casos há mudança de propósito, de desígnio, de projeto, mas de atitudes.

Outro trecho muito usado para defender a ideia de que Deus é imutável, acontece no livro de 2 Reis. Temos o caso do rei Ezequias, a quem o Senhor disse, através do profeta Isaías, que morreria por causa de uma doença. Ezequias então orou a Deus; mas o segredo de Deus era que ele o curaria e lhe daria mais 15 anos de vida, como de fato sucedeu. Tal acontecimento não indica contradição ou mudança. A declaração foi feita para humilhar a Ezequias e revelar-lhe a completa dependência que tinha de Deus, levá-lo a orar, e, assim, a imutável vontade divina fosse concretizada [2Rs 20.1-7].

De qualquer forma, a ideia que a Bíblia nos dá do arrependimento divino é precária, mas suficiente para nos revelar a  singularidade e infinitude divinas, porque há coisas em Deus que são próprias somente dele, e que podem até ter alguma semelhança com as das criaturas, de forma que são expressos como se fossem delas, mas não são suficientes para explicar ou definir o que é exclusivo de Deus. Por exemplo, o termo hebraico traduzido para "arrependimento de Deus" é Nãham, que traduzido quer dizer tristeza ou consolo. Já o termo hebraico para o arrependimento humano, o voltar-se do pecado para Deus, dando-nos a ideia clara de remorso, é Shûb. Ainda que Deus se arrependa, é-nos claramente revelado que o seu arrependimento é díspare do nosso, havendo a possibilidade de existir elementos parecidos, mas, com certeza, não há igualdade entre eles, por tudo o que Deus é e por tudo o que somos. Mesmo que Deus tenha sentimentos parecidos com os nossos, em seu ser perfeito, eles também são perfeitos, e jamais serão iguais aos dos homens.


CONCLUSÃO

A imutabilidade de Deus nos dá, seres mutáveis e falíveis, a certeza de que somente nele encontraremos o repouso necessário, a confiança necessária, a esperança necessária, o ânimo necessário, a vida necessária, e tudo o mais capaz de nos trazer a segurança de que, apenas nele, estaremos completamente seguros. Mas isso não se baseia em nossa percepção ou em nossa capacidade de autoindução [como uma técnica de autoajuda], mas na certeza de que ele não muda nos compromissos e promessas que jurou, em seu nome, realizar por nós, e para nós.

Confiar que temos alguma coisa que possa agradá-lo, quando não há nada em nós que possa agradá-lo, é transferir para nós o mérito que é somente dele. Por mais que façamos, por mais que julguemos ter feito em prol do reino de Deus, isso não será nada diante dele, pois é ele quem, em seu plano imutável, nos capacitou e nos deu a realizá-lo. Afinal, como seres caídos, miseráveis, tolos, pecadores e mutáveis podem se aproximar do Deus absoluto, infinito e perfeito, sem serem consumidos? Apenas através do Filho Amado, Jesus Cristo, pelo qual somos feitos capazes de não somente nos aproximar dele, mas de tê-lo como Pai, e de ser tratado por ele como filhos. A obra maravilhosa de Cristo nos ergueu, limpou e curou, de maneira que fôssemos aceitos, reconciliados eternamente com ele. E isso transcende todo o tempo, ainda que realizada no tempo, pois é fruto da sua vontade e projeto eternos e imutáveis.

Glória e honra e louvor ao Deus bendito que, dia após dia, nos revela a sua misericórdia e graça e bondade infinitas para com o seu povo; sem que esse povo tenha feito algo para merecê-lo.

Notas: 1- Aula realizada na E.B.D em 04.03.2012
2- Baixe o áudio desta aula em Aula 21.MP3

segunda-feira, 26 de março de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 20: A imutabilidade de Deus - Introdução





Por Jorge Fernandes Isah
 



INTRODUÇÃO

A imutabilidade divina quer dizer que Deus não muda. Mas ele não muda em quais aspectos? 

A resposta é: em todos. 

Deus é imutável em seu ser, em sua natureza, em seus atributos, de forma que ele sempre foi e sempre será o mesmo; não havendo possibilidade de variações em seu caráter ou em seus atos, nem o tornando melhor nem o piorando, visto ser Deus perfeito, infinitamente perfeito, e o perfeito não pode sofrer alterações. Se tal acontecesse a Deus, ele não seria perfeito, seria inconstante e sujeito as modificações, revelando-se dependente, subordinado a causações e motivações que alterariam o seu caráter, natureza e atitudes. E sabemos que as coisas finitas são em si mesmas limitadas e transitórias, passíveis de transformações ao longo do tempo, como as criaturas, por exemplo. 

Certa vez, um filósofo, não sei se Heráclito ou Parmênides, disse: não se pode descer duas vezes no mesmo rio, porque novas águas sempre correm sobre você. Com isso, tem-se que a água, um elemento próprio em suas características, à medida em que corre no leito do rio vai-se alterando, perdendo e ganhando componentes que a modificam, impedindo-a de ser a mesma na nascente e continuar a mesma até chegar à foz. Vários fatores contribuirão para que a água não permaneça a mesma; águas de outros rios e da chuva, e com elas elementos provenientes de outros solos e da atmosfera, se incorporarão; dejetos químicos oriundos das indústrias e das residências se ligarão; enquanto o calor do sol evaporará alguns de seus componentes e, mesmo o homem, com suas técnicas de dragagem modificá-la-ão. 

Mas sendo Deus absolutamente independente, eterno e infinito, tem-se que ele é também absolutamente imutável. E, assim, um atributo conduz a outros, os quais se relacionam entre si, conectando-se maravilhosamente, resultando no ser perfeito. Pois somente o ser perfeito, em sua natureza, impede e elimina toda alteração; porque as mudanças, invariavelmente, implicarão em imperfeição. É o que o salmista nos diz: “Mas tu, Senhor, permanecerás para sempre, a tua memória de geração em geração... Eles perecerão, mas tu permanecerás; todos eles se envelhecerão como um vestido; como roupa os mudarás, e ficarão mudados. Porém tu és o mesmo, e os teus anos nunca terão fim.” [Sl 102.12, 26-27]. No verso 11, lê-se: “Os meus dias são como a sombra que declina, e como a erva me vou secando”. O salmista se compara a uma sombra, e o que é uma sombra? É algo inconsistente, uma projeção, um espectro, efêmera, de pouca duração. Pode-se notar o quanto ela se faz diferente à medida em que se caminha, por exemplo. À medida que nos movemos, e o reflexo da luz altera-se quanto à posição do nosso corpo, a sombra se metamorfoseia, assumindo várias formas, ou desaparecendo. Ele também se compara a uma erva que se vai secando. Nasce vigorosa, cresce, e definha com o passar do tempo. Ao contrário dele, o Senhor é eterno; ano após ano, geração após geração, tudo muda, mas Deus é sempre o mesmo. Porque ele não está afeito ao tempo, nem sobre sua ação; e, como nós, não está preso a nenhuma contingência, incapaz de ser modificado através de quaisquer ações. Pelo contrário, é ele quem cria, muda e transforma tudo que existe. Assim, também, diz Tiago: “Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação” [Tg 1.17]. E novamente é-nos repetido quanto ao Senhor: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” [Hb 13.8]. De maneira que até Balaão não teve como não proferir: “Deus não é homem, para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa; porventura diria ele, e não o faria? Ou falaria, e não o confirmaria?” [Nm 23.19] 

Então, Deus diz de si: “Porque eu, o Senhor, não mudo; por isso vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos” [Ml 3.6]. A afirmação é muito clara: Deus não muda; não há alteração no seu ser, na sua natureza, em seus atributos. Mas, também, em seus propósitos, decretos e promessas. Mesmo diante da miséria e pecaminosidade humana, Deus não se deixou influenciar pela condição decaída do homem, permanecendo o mesmo também em suas promessas, em seu plano eterno. Isso porque, entre outras coisas, o amor de Deus pelos eleitos também é imutável. É o que o apóstolo confirma: “Por isso, querendo Deus mostrar mais abundantemente a imutabilidade do seu conselho aos herdeiros da promessa, se interpôs com juramento; para que por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, tenhamos a firme consolação, nós, os que pomos o nosso refúgio em reter a esperança proposta” [Hb 6.17-18]. Este trecho está diretamente relacionado com o Salmo 110.4, que diz: “Jurou o Senhor, e não se arrependerá”, declarando que Deus, não tendo por quem jurar, jurou por si mesmo, pois ele não falha no que diz, não desiste do que resolveu, nem muda o que estabeleceu. Ao contrário do homem, que é inconstante em suas promessas e juramentos, quebrando-os, como prova da infidelidade em seus propósitos, Deus declara que a sua vontade é única, imutável, irrevogável. Os seus planos, eternamente traçados, não se alteram, porque Deus é imutável. Ele é infinitamente poderoso tanto para elaborá-los como para executá-los, infalivelmente. Com isso, não se quer dizer que Deus seja fiel aos homens, ainda que isso possa, de alguma forma, ser estabelecido como verdade. Mas entendo que a fidelidade de Deus é primeiramente a si mesmo, e ao que decretou. Ele é autocoerente consigo mesmo, não desistindo nem revogando aquilo que prometeu, conservando-se fiel a si e às suas promessas. Logo, temos a certeza do cumprimento das suas promessas, porque Deus prometeu e as cumprirá. Pelo poder que tem de fazer todas as coisas, segundo o propósito imutável do seu ser.

Nota: Aula realizada na E.B.D. em 26.02.2012
Baixe o áudio desta aula em Aula 20.MP3

sábado, 17 de março de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 19: A infinidade de Deus





Por Jorge Fernandes Isah
 



INTRODUÇÃO



Quando se diz: Deus é infinito, está-se a afirmar o quê, especificamente?

A primeira ideia que se tem é a de que ele não tem fim, de que não há limites nele. Mas também se quer dizer que ele é absoluto, eterno, perfeito, onipresente, e, assim sendo, é impossível que a razão humana o alcance. Em outras palavras, está-se a dizer que Deus é a negação da finitude, de que não está sujeito a qualquer limitação, de que nem o universo, a relação espaço-tempo, ou qualquer outro elemento possa limitá-lo. Deus não pode ser apreendido nem contido por nada ou ninguém, de forma que este atributo indica a ausência completa e total de restrições, obstáculos e defeitos no ser divino. No que ele é, e não pode não-ser, encontramos a plenitude em todos os seus atributos, e assim, a infinidade é o qualificador de todos os demais. Temos então que o seu poder é infinito, a sua bondade é infinita, o amor, a sabedoria, a misericórdia, e todos os demais atributos são infinitos. Foi a partir do ser infinito e do seu poder infinito, da sua vontade infinita, que Deus criou o finito, como contraste ao que ele é, mas também como prova da sua infinita misericórdia e bondade de se dar conhecer, como realidade no sentido mais elevado, mais concreto, em que o real é o Deus vivo se definindo como tal, em todos os seus aspectos infinitos, sendo essencialmente infinito [Jó 11.7-10; Sl 145.3; Mt 5.48]

Como já disse anteriormente, há uma ligação intrínseca entre os atributos divinos, uma unidade perfeita e santa, os quais somente podem ser analisados separada e isoladamente por causa da nossa limitação e incapacidade de entendê-los por completo. Fato é que Deus nos deu a revelar parte dos seus atributos, vistos serem eles infinitos assim como o seu ser é. Se fosse de outra forma, seria impossível qualquer conhecimento divino pelo homem, dado sermos inaptos em nossa capacidade naturalmente limitada para alcançá-lo; as perfeições de Deus estão além de qualquer grau alcançável pelo homem. Pois ao contrário dele, somos prisioneiros do espaço e do tempo, o que, por si só, já nos faz “quebrar a cabeça” para tentar entender algo que está muito além da nossa compreensão. A eternidade é um enigma para o homem exatamente por não escaparmos da ideia de passado, presente, futuro e lugar. A vida está condicionada aos fluxos temporais e espaciais, dos quais não temos como fugir.

E creio que, por isso a idolatria é uma abominação a Deus. Como pode o homem conceber possível adorar uma imagem ou mesmo um conceito ou ideia que sempre será finito e limitado ao espaço e tempo? Todos os deuses, sem exceção, estão limitados por essa contingência espaço-temporal, ainda que habite apenas a mente. Na história, não se vê um deus que se compare ao Deus bíblico, e, talvez, por isso, todos eles sejam o reflexo da limitação humana. Os deuses gregos e romanos assumiam características físicas e emocionais do homem, tanto em suas eventuais virtudes como em seus constantes defeitos. E essa é uma grande diferença que há entre eles e o Deus vivo e verdadeiro, no qual não se encontra qualquer mancha ou defeito. Em Cristo, o Verbo feito homem, a sua perfeição é evidente mesmo assumindo a forma corporal humana, visto não ter pecado nem foi achado nele dolo algum.

Por que Deus é Deus, ninguém pode adorar outro deus sem aborrecer ao verdadeiro e único Deus. O qual ordenou para que não tivéssemos outros deuses diante dele, porque ele é o Senhor nosso Deus, e Deus zeloso [Ex 20.2, 5].

Estudaremos agora as duas maneiras pela qual a infinidade de Deus pode ser entendida; quanto ao tempo, a eternidade, e quanto ao espaço, a imensidão.


ETERNIDADE

Este é um termo que tem trazido muita dor de cabeça para teólogos e filósofos, dada a dificuldade e mesmo impossibilidade que se tem de entendê-la, algo que está fora da nossa realidade, e que somente é possível em Deus, o qual é eterno.

Então dizer que a eternidade é a expressão da infinidade divina quanto ao tempo parece-me deixar claro como é difícil, mesmo para homens altamente capacitados intelectualmente, defini-la. Já que para o eterno não há tempo, e mesmo o tempo não foi criado em uma determinada “fração” da eternidade, como algo que existisse a partir de um determinado momento, dizer que ele está no passado somente terá correlação consigo mesmo, e aqueles que estão contidos nele, as criaturas, jamais com Deus. Mas compreendo que esta foi a maneira sábia que Deus se utilizou para, uma aplicação da sua misericórdia para com os homens, desse-nos algum entendimento do que ele é.

Por isso a Bíblia diz que Deus subsiste de séculos em séculos, de geração em geração [Sl 90.1-2, 102.12], utilizando-se da linguagem humana e simples para que qualquer homem possa entendê-la. A transitoriedade humana contrapõe-se à duração infinita de Deus, de que ele sempre existiu e existirá para todo o sempre, sem jamais deixar de sê-lo, sendo o que é. Ao contrário de nós, que somos afetados pelo tempo [envelhecimento e morte], significando a finitude e temporalidade da nossa vida, Deus não tem princípio nem fim, como já foi dito, por isso, qualquer ideia do que seja a eternidade divina, não passará de sombras, pelas quais poderemos apreender algo, mas jamais exaustivamente. Ainda que a nossa alma seja imortal, e a imortalidade não significa ser eterna, tivemos um começo, o qual se deu pela vontade infinita de Deus nos criar à sua imagem e semelhança. Mas o “Imago Dei” é parcial, nunca total, nem pode sê-lo, pois se fosse, seríamos como Deus, e isso é impossível; contudo, poderemos experimentar uma outra forma de eternidade, no sentido de que, daqui para a frente, estaremos indefinidamente com Deus, para sempre, na eternidade.

Este é outro conceito de eternidade, e no qual a Bíblia também nos ensina, de que os eleitos estarão sempre em comunhão com Deus; de que permanentemente, ainda que o tempo transcorra sequencialmente, nunca terá fim o nosso relacionamento com o eterno. A forma utilizada “vida eterna” traduz de maneira inteligível o que nos aguardará após a morte física: não haverá cessação do nosso viver para Deus e por ele. Contudo, sem saber como se dará isso, penso que não transcenderemos o tempo, de que não estaremos fora dele, ainda que ele tenha domínio sobre nós, e não sintamos os seus efeitos [envelhecimento, por exemplo]. Maravilhosamente, Deus anulará os efeitos do tempo sobre o seu povo [e mesmo sobre os réprobos, os quais sofrerão o justo castigo divino no Inferno, tanto anjos como homens caídos]. Mas é uma cogitação. Talvez o tempo seja realmente suprimido, e entremos num viver infinito como o de Deus, mas aí entraremos nas limitações que o próprio corpo físico impõe, a de que não podemos ser infinitos, e se não podemos, não há como falar em eternidade para nós. Haverá um tempo infindável, que não se extinguirá e que durará para sempre; o que, para nós, é muito mais do que poderíamos esperar, caso Deus não se compadecesse.

O fato é que Deus nunca foi, nem nunca será, pois ele é. Para ele, não há passado, presente ou futuro, o que dificulta ainda mais a nossa compreensão, pois nossa mente está presa ao conceito temporal, e de que tudo é temporal. Para nós, as coisas acontecem em sucessão, limitadas pelo tempo e espaço, ao começo e fim, pois nada na criação pode ser compreendido como eterno. Entender que Deus transcende o tempo, de que está fora do tempo, mas de maneira absurdamente proposicional ele age no tempo [imanência], sendo o Senhor da história, é um grande conforto. Não somente o criou, mas o governa soberana e diligentemente, sem que nada possa escapar à sua ordem. Quando o apóstolo diz que um dia para Deus são mil anos, e mil anos são como um dia [2 Pe.3.8], ele está nos chamando a compreender a sua eternidade, e a sua transcendência quanto ao tempo, sem que se possa confundi-lo com a criação. Ele é distinto da criação, pois é a própria eternidade, ainda que toda a criação subsista pelo seu favor e poder. Ao determinar todos os fatos, Deus não se inclui neles, mas ordena-os conforme a sua sabedoria, perfeição e poder. Creio ser prudente entender que o agir de Deus na história não o torna em componente da história, como um elemento criado por ele mesmo, algo do tipo uma imagem, um personagem de si mesmo. O fato de Deus não poder ser compreendido plenamente não o diminui em nada, nem pode torná-lo em um simples personagem, pelo contrário, revela-nos exatamente a sua grandiosidade e majestade, de forma que o adoremos, glorifiquemos e o reverenciemos como Deus.

E aqui entra um ponto importante, o qual não devemos esquecer, de que a eternidade de Deus nos remete à eternidade das suas promessas de bênçãos, as quais se cumpriram, cumprem e cumprirão no tempo, e das quais somos os alvos, significando que, mesmo vivendo uma vida de tribulação e lutas, somos confortados pela certeza de que naquele dia todas as nossas lágrimas serão enxugadas, “e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas” [Ap 21.4]. Com isso entendemos que as provações não duram para sempre, que são circunstanciais e momentâneas, e de que encontramos sempre, no Senhor, aquele que tem “sido o nosso refúgio, de geração em geração” [Sl 90.1]. A eternidade de Deus nos tornará mais confiantes nele, e também nos fará mais humildes diante dele; pois a própria condição temporal do homem já seria suficiente para que toda a arrogância e soberba e orgulho caíssem por terra. Comparar-nos a ele é o grau máximo de loucura que um homem pode alcançar; e esse homem perdeu completamente a noção da realidade, da verdade. Como Tiago alertou: “Digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque, que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco, e depois se desvanece” [Tg 4.14]. E enquanto não somos nada, em reputados por nada, Deus é Deus, de eternidade a eternidade.


IMENSIDÃO E ONIPRESENÇA

Imensidão e onipresença são termos quase sinônimos, contudo, guardam uma diferença que tentarei explicar. Elas se relacionam com a infinidade divina em relação ao espaço.

O termo “imensidão” nos dá a ideia de uma extensão desmedida, de um espaço imenso, ou uma grandeza ilimitada. Porém, a própria ideia de espaço é restritiva, não se adequando ao atributo divino, pois Deus transcende toda a ideia de limitações espaciais [imensidão], sem que ele esteja ausente de um só ponto do espaço com todo o seu ser [onipresença]. Muitas vezes pensamos em uma parte de Deus aqui, outra acolá, nos dando a falsa ideia de que Deus está “espalhado” por todo universo, o que não é verdade.

Podemos, como exemplo, imaginar um homem deitado em uma cama. O homem é formado por partes, cabeça, tronco e membros, e a cama também, cabeceira, “pés”, estrado, colchão, etc. O homem está em contato direto com o colchão, de forma que as demais partes não se encontram em contato com ele, ainda que o seu corpo esteja depositado sobre e entre elas. Não há como dizer que o homem está em todas as partes da cama. A cabeça ocupa uma parte do colchão, enquanto o tronco outra, e os pés outra. O homem não toca ao mesmo tempo os pés da cama, o estrado, o colchão, etc. Nem que é possível imaginá-lo fora da cama, quando está deitado nela. Deus, como não tem partes mas é o ser único e indivisível, não poderia estar sobre e entre as partes da cama sem encher as demais. Na verdade, como é uma analogia e a complexidade do ser de Deus é mesmo incompreensível para o homem, podemos dizer que Deus enche toda a cama, tocando ao mesmo tempo nos pés, estrado, colchão, cabeceira, etc, ou seja, não há limites na cama em que Deus não esteja presente.

Com isso, tem-se de tomar cuidado para não se imaginar que Deus seja a cama, que o seu ser faz parte da cama. Deus não é a cama, pois a cama é objeto da criação, mas Deus preenche todos os espaços do objeto de forma que não há limites para ele. Mesmo a madeira mais maciça ou a rocha mais sólida ou o gás mais volátil, Deus os enche. É a afirmação do salmista: “Para onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua face? Se subir ao céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás também. Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, até ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá” [Sl 139,7-10].

Note que Davi diz ser impossível fugir de Deus; onde ele estiver, seja no mais alto dos céus ou no mais profundo da terra, ali o Senhor estará. Mas não há confusão ou mistura entre o ser de Deus e os objetos relacionados pelo salmista. Ele os distingue claramente. Também, ele não diz que uma parte de Deus está aqui e outra acolá, mas diz que ele, o todo divino, está em cada um desses lugares, enchendo cada parte dos lugares com a plenitude da sua presença. Portanto, devemos entender que Deus está presente em cada parte do universo, sem, contudo, se misturar com elas. O mesmo acontece conosco, os quais somos templo de Deus. Ele não se divide em partes e cada uma das partes ocupa um corpo/alma dos eleitos. Deus está completamente em cada um de nós, pois Deus é indivisível. Ele nos enche com todo o seu ser, de forma que Deus não está um pouco em mim, outro tanto no irmão, e mais um tanto em uma irmã do outro lado do planeta. Ele está completa e totalmente em cada um de nós, aqui, lá e acolá, em todos os lugares. Assim Deus está em tudo, ao mesmo tempo, com toda a plenitude do seu ser, sem jamais ser cada uma das suas criaturas.

Leiamos o que Salomão diz, e que pode clarificar um pouco mais a questão: “Mas, na verdade, habitaria Deus na terra? Eis que os céus, e até o céu dos céus, não te poderiam conter, quanto menos esta casa que eu tenho edificado” [1Rs 8.27].

Neste trecho, Salomão está a dizer duas coisas:

1) Deus transcende todo o espaço e não está sujeito às suas limitações, de tal forma que nem os céus, nem os céus dos céus podem contê-lo. Isto é a imensidade ou imensidão de Deus [transcendência].

2) Ainda assim o rei construiu uma casa onde Deus habitasse, e enchesse-a com a plenitude do seu ser. Deus preenche todo o espaço com todo o seu ser, relacionando-se com a criação, e isto é a onipresença divina [imanência].

Deus está presente em toda parte sem que esteja parcialmente em cada uma delas. A plenitude da sua presença enche cada parte do espaço, do universo, sem que ele seja cada uma delas ou o todo.

Outro trecho bíblico que confirma a assertiva de Salomão quanto à infinidade divina está em Jeremias 23.23-24, afirmado também por Paulo em Atos 17-27-28, entre outras passagens.


CONCLUSÃO

Diferentemente das criaturas, que ocupam um espaço limitado onde estão, sendo o seu espaço a medida do seu tamanho e outro corpo não poderá ocupá-lo ao mesmo tempo [a terra ocupa um lugar delimitado no espaço sideral, e outro planeta não poderá ocupá-lo simultaneamente], e dos espíritos finitos, anjos ou demônios, que operam em lugares específicos, mas não estão em toda parte, Deus está presente em todo o lugar, o seu ser enche todo o espaço, sem que ele o limite. De forma que ele está presente em todas as coisas, e em cada uma delas em particular, sem que ele possa ser confundido ou misturado a elas. É claro que Deus se manifestará de maneira diferente em cada uma. Ele não se manifesta do mesmo modo na natureza, no ímpio e no crente. Como Stephen Charnock diz: "Ele enche o inferno com a sua severidade, os céus com a sua glória, e o seu povo com a sua graça" [2].

A infinidade divina deve nos trazer temor e reverência. Especialmente por sabermos que estamos diante do Deus imenso e onipresente, que a tudo vê; cada passo e decisão tomada por seus filhos, entristecendo-se com os nossos pecados e alegrando-se quando resistimos e nos tornamos mais semelhantes ao seu Filho Amado, Jesus Cristo. Sejamos conscientes de que, diante dele, devemos buscar e ansiar uma vida santa, odiar e repudiar uma vida pecaminosa.


Notas: [1] - A metáfora que se faz da eternidade como um “eterno presente” não é apropriada, pois remete o eterno ao tempo, quando sabemos ser o presente uma parte do tempo. Apenas Deus é eterno, e a eternidade é Deus. Nada mais pode ser comparado ou relacionado com o fato real desse atributo divino. Logo, qualquer comparação com o tempo visa nos levar a entender algo que, para nós, é inexprimível e mesmo ininteligível em sua complexidade e esplendor
[2] The Existence and the Attributes of God, vol 1, pg 367. Citado por Heber Carlos de Campos em "O Ser de Deus e os seus atributos", pg. 216, Editora Cultura Cristã;
[3] Aula realizada na E.B.D. em 12.02.2012;
[4] Fotos que ilustrem os atributos divinos são impossíveis, mas a partir do que é imperfeito, mutável, finito e temporal, pode-se reconhecer a singularidade, perfeição e grandiosidade do ser divino. Pois, cada um dos seus atributos nos faz conhecer a realidade, que somente é possível a partir do Absoluto, e sem ele, qualquer conjecturação não passa de fuga da verdade. 
[5] Baixe esta aula em aula 19.mp3

quinta-feira, 15 de março de 2012

Avaliação e análise do Estudo da C.F.B de 1689





Por Jorge Fernandes Isah


Hoje teremos uma aula diferente. Darei uma parada no estudo da Confissão de Fé Batista de 1689, ainda que o assunto seja ela, de certa forma. Decidi solicitar, aos queridos irmãos, uma avaliação do rumo em que as aulas estão se realizando, de forma que eu pudesse ter uma impressão do que deve ser mantido e do que pode ser modificado. O objetivo é, na verdade, ter umfeedback dos que participam da E.B.D, para que o estudo da C.F.B. possa ser aprimorado. Como sou “marinheiro de primeira viagem”, e nunca lecionei antes, acho importante a contribuição dos irmãos além da assistência, como observadores. Mas, por que? Insegurança e dúvidas quanto ao conteúdo apresentado? Ou quanto ao método de exposição? Bem, um pouco disso tudo também, mas principalmente porque vejo como prioritário não apenas o acúmulo de conhecimentos e informações mas, a partir dele, a aplicação prática, no dia-a-dia, daquilo que aprendemos e foi-nos ensinado. Com isso não estou apelando para o pragmatismo, em que os resultados ditarão o ensino; mas uma reflexão sobre a validade do ensino, no sentido de nos fazer cristãos melhores e nos ajudar com a tarefa de testemunhar o Evangelho de Cristo às pessoas com as quais nos relacionamos diariamente. 

Fiz um esboço de algumas questões a serem abordadas, mas não o segui “ipsis litteris”, à medida em que dialogava com os irmãos. Eles foram abordados em maior ou menos grau e, penso que, no fim das contas, esta aula serviu para colocar alguns pontos que considerei importante, e os irmãos também colocaram pontos igualmente importantes. 


Assim a aula foi dividida em duas etapas: 

PRIMEIRA: AVALIAÇÃO 

Primeiro, gostaria de saber a opinião dos irmãos em relação ao nosso estudo. O que têm achado? [Aponte os pontos favoráveis e os desfavoráveis]. 

Segundo, em quê o presente estudo tem contribuído para a melhoria da sua vida cristã? 

Terceiro, aponte o que foi que melhorou, caso tenha melhorado. 

Quarto, o estudo deve trazer conhecimento, informação. Mas também uma aplicação prática. Você pode apontar em quais pontos este estudo contribuiu no seu dia-a-dia? 

Quinto, você acredita, realmente que o estudo da Confissão de Fé Batista pode torná-lo(a) em um cristão melhor? Por que? 

SEGUNDA: TEXTO PARA MEDITAÇÃO 

Recebi de um amigo e irmão, que é missionário, o seguinte relato, algo acontecido no seu dia-a-dia, o qual transcreverei abaixo, resguardando os nomes de locais e pessoas, por motivos mais do que óbvios:

“Médico de índio, médico de branco 
- Alô, Luiz? Sou eu...
- Ah, Professor! Que bom que o senhor ligou. Eu não estou bem. De repente, a boca começou a sair sangue e das fezes também. Aí, o médico não deixou eu voltar para aí. 
- Luiz, em qual hospital você está?
- Eu estou aqui no hospital... Eu vou operar...
- Já está marcada a cirurgia?
- Não, o médico disse que as plaquetas estão fracas. Eu não posso operar agora. Tenho que ficar bom. Aí, eles me operam... Eu acho que ainda vou demorar para voltar...
- Luiz, qualquer coisa que você precisar pode pedir...
- Professor, eu preciso mesmo. O meu filho está aí sozinho. Fiquei sabendo que a minha família foi toda embora hoje de manhã para a aldeia, mas o meu filho ficou na casa da cidade sozinho. Ele está com a família do meu sobrinho, mas ele está sem a gente. O senhor pode comprar cem reais de comida e levar para ele? Depois eu pago o senhor.
- Claro, Luiz. Não se preocupe. Descanse e se recupere. Aqui, a gente vai cuidar dele. Eu estou pedindo para Jesus te fortalecer para que você volte logo...
- Ah, Professor, pede sim. 

Desliguei o telefone com o peito apertado. Luiz já ouvira sobre Jesus, mas tínhamos planos de começarmos a compartilhar as histórias bíblicas com ele. Seria uma oportunidade para ele aprender, mas essa parada dele no hospital nos pegou de surpresa. 

O filho do Luiz deve ter uns dez anos de idade... Ele ficou, mas não ficou sozinho. Está com um dos tantos sobrinhos do Luiz. Peguei o carro e fui fazer as compras determinadas pelo Luiz. Já havia suspeitado de que havia algo por trás dessa história toda, mas só confirmei minhas suspeitas quando parei o carro na frente da casa do Luiz e ele veio ao meu encontro: o Feiticeiro. Já escrevi diversas vezes sobre ele... Além disso ele também ficou conhecido aqui na região como o “índio que cura em nome de Jesus, Maria e José”. Ano passado, escrevi uma série de dez histórias sobre ele e sobre o maior perigo que assola o trabalho missionário no confronto com a cosmovisão animista: o perigo real do sincretismo.
- Professor, tudo bem?
- Sim, chegamos tem uma semana.
- Eu estou aqui com a minha família há um mês.
- E o filho do Luiz? Está aí?
- Está.
- É porque o Luiz pediu que eu trouxesse umas compras para ele. 
- O que o Luiz te falou?
- Para fazer umas compras para o filho... Ele vai demorar a voltar.
- Eu sei. Eu estou aqui fazendo pajelança para descobrir quem tem inveja dele e curá-lo desse mal.
- Então, você está fazendo pajelança para ele?
- Sim. E a próxima vez que você falar com ele no telefone, lembre para ele que ele tem uns amigos brancos lá em São Paulo que com certeza vão poder ajudá-lo também, assim como você está ajudando...

Este é o desfecho da história: o Feiticeiro está fazendo pajelança para o Luiz. E, assim como o médico do branco é caro, o médico do índio também é muito, mas muito caro. As compras não eram bem para o filho, mas o Luiz está endividado com o Feiticeiro por causa das pajelanças que ele está fazendo. E o Feiticeiro deve estar cobrando muito caro, porque está pressionando o Luiz a arranjar outros amigos para cobrir a dívida. O próprio fato de o Feiticeiro estar aqui na cidade morando na casa do Luiz já faz parte do pagamento dessa dívida. 

O Pajé e o Feiticeiro cobram um preço muito alto por suas consultas e curas, pois na cultura dos povos daqui nada é de graça: nenhum presente, nenhuma oferta, nenhuma ajuda ou benefício. Seja na relação com os seres espirituais, seja na relação entre os seres humanos, todos estão sempre em dívida uns com os outros. 

Ore para que a Graça de Deus seja revelada a esses povos!” 

Esta história me tocou por vários motivos, e me fez questionar várias coisas, entre elas, a mais importante, é o nosso [meu, quero dizer] envolvimento com a obra de proclamação do Evangelho. Sei que nem todos são chamados para evangelizar, mas a responsabilidade de testemunhar a Cristo é obrigação e dever de todos. Se não sou capacitado por Deus a evangelizar as pessoas [proclamar verbalmente a fé], sou obrigado a ter uma vida cristã na qual as pessoas, mesmo sem ouvir uma única palavra evangelizadora, “vejam” o Evangelho. Muitos negam o que dizem com o seu testemunho pessoal, enquanto outros afirmam o que não disseram com o seu testemunho pessoal. A nossa trajetória neste mundo tem por objetivo nos fazer, cada dia mais, semelhantes ao Filho de Deus, Jesus Cristo. O que refletirá na proclamação do Evangelho, seja por meios verbais, seja por atitudes. O ideal é que ambos os meios sejam igualmente santificados e se assemelhem com aquilo que Cristo disse e fez. 

O certo é que ninguém poderá viver o que diz se não for resgatado e regenerado por Cristo, mas muitos não precisarão dizer o que são, pois suas vidas resultam em louvor e glória para o bom Deus, na medida em que testemunham que Cristo vive nelas assim como vive no que fazem.

Então, pergunto: Em quê esse relato pode se relacionar com o nosso estudo? Ou melhor, com o foco do nosso estudo? 

Com a resposta, cada um dos eleitos, regenerados e salvos pelo sangue do nosso Senhor, derramado na cruz.

Nota: 1-Aula realizada em 05.02.2012, na E.B.D.
2-Tenho recebido "feedbacks" de alguns irmãos sobre as aulas, aqui, através do meu email, e pessoalmente. Se você ainda não o fez, por favor, gostaria da sua opinião. Se não quiser torná-la pública, envie uma mensagem para o meu endereço pessoal: dosty@monergismo.com Ser-lhe-ei grato. Ah... valem tanto elogios como censuras, mas as que trazem algum crescimento e aprimoramento são as que apontam acertos e falhas. 
3-O áudio desta aula pode ser ouvido e baixado em Aula 18.MP3
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