Página de doutrina Batista Calvinista. Cremos na inspiração divina, na inerrância e infalibilidade das Escrituras Sagradas; e de que Deus se manifestou em plenitude no seu Filho Amado Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, o qual é a Segunda Pessoa da Triunidade Santa

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 32: Ainda sobre a vontade de Deus




Por Jorge Fernandes Isah




UMA OU DUAS VONTADES? 

Muitos afirmam que Deus tem duas vontades. De que ele decretou tudo [a sua vontade decretiva] e de que estabeleceu preceitos, os quais podem ser "resistidos" pelo homem que os desobedece [sua vontade preceptiva]. Em linhas gerais, esse esquema tem por objetivo esclarecer alguns conflitos que a Bíblia nos apresenta entre a vontade soberana e aquela vontade que é "quebrada" pelo homem. Acontece que a vontade divina é inquebrável, irresistível e impossível de não se manifestar. Ninguém resiste a Deus, como o profeta diz: "E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?" [Dn 4.35].

Vejamos mais alguns textos: 

"Mas o nosso Deus está nos céus; fez tudo o que lhe agradou" [Sl 115.3];
"Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido" [Jó 42.2];
"Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade" [Is 46.10]; 

"O Senhor dos Exércitos jurou, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará... Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?" [Is 14.24,27] 

O que vocês acham disso? É possível que a vontade de Deus seja resistida ou anulada por suas criaturas? Ou por forças contingentes? 

O fato é que o conselho de Deus, que também é chamado de vontade, é irresistível, eterno e santo. Não pode ser alterado nem adulterado, pois se fosse possível transtorná-lo, acarretaria na desordem, e sabemos que Deus não é Deus do caos. Pois quando vemos o andar da história, o seu desenrolar diante dos nossos olhos, onde o homem cada vez mais se afasta do Criador, desprezando-o e, por sua tolice, reservando para si mesmo a ira vindoura; mesmo entre todas as confusões que a vida nos revela e das quais o homem é o único culpado, ainda assim tudo está conforme Deus estabeleceu eternamente, como parte do seu projeto perfeito e santo. Onde mesmo a imperfeição e todas as deficiências originárias dela; onde o mal e tudo o que ele traz de mais doloroso e injusto; onde a desobediência levará às punições mais severas e duradouras; ainda assim tudo isso faz parte do plano geral arquitetado por Deus e que tem como objetivo a sua glória e revelar-nos a sua sabedoria, graça, misericórdia e santidade. 

Alguns podem dizer que nada daquilo, se partiu da mente de Deus, faz dele sábio ou bondoso. Mas, pergunto: se Deus não é sábio e bom, de onde viria a sabedoria e a bondade? 

O certo é que: 

1) A vontade de Deus é soberana, e nada pode frustrá-la.
2) Tudo o que Deus pensou e quis fazer, assim será.
3) Nem os anjos nem os homens podem frustrar os planos de Deus.
4) Tudo foi decretado e estabelecido por Deus eternamente, de forma que acontecerão infalivelmente.
5) Mesmo a desobediência dos anjos e homens está dentro do decreto e plano divinos.

Dentro de todos os esquemas teológicos existentes, entendo que em Deus há duas vontades: a revelada, a qual é possível ser conhecida por qualquer homem, como possibilidade, e que nos é apresentada em detalhes pela Escritura Sagrada, e a secreta ou oculta, aquela que somente Deus tem conhecimento e da qual todos nós desconhecemos, ignorando-a completamente. É o que nos diz o profeta: "As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei" [Dt 29.29]. 

De forma que não são duas, mas apenas uma vontade, a qual o homem conhece parcialmente, mas Deus a retém integralmente, sem que nada lhe esteja encoberto. Na verdade há uma vontade apenas, de forma que a vontade revelada está subordinada, sujeita à vontade oculta, que é todo o conselho divino. 

O problema é que ficamos conjecturando algumas vezes a partir da Escritura, outras vezes por fontes não confiáveis, qual seria o teor da vontade secreta de Deus. E esse é um esforço inútil e tolo, revelando o nível de imperfeição e limitação humana ao elaborar, e muitas vezes se satisfazer com o esquema proposto, algo que escapa completamente a sua capacidade. Por isso, desde sempre, satanás tem incitado o homem ao ocultismo, a buscar meios sobrenaturais de desvendar qual seja essa vontade. Porém sabemos que esses meios nada mais são do que a própria ação diabólica em iludir e confundir o homem, de sorte que ele se apresente preso ao desconhecido ao invés de se libertar naquilo que Deus deu-lhe a conhecer, no que pode ser conhecido. 

A adivinhação não somente é um engano como uma provocação e afronta a Deus; como se criaturas imperfeitas, pecadoras e tolas pudessem explorar sua mente perfeita e santa. Com isso não estou a dizer que tentar racionalmente dar compreensão a algo insondável e inescrutável seja maligno ou tolice. Nem sempre é, apesar de na maioria das vezes ser. Os esquemas humanos parecem funcionar para nós, mais ou menos como um placebo "cura" o hipocondríaco. Parece que a coisa é real, que estamos indo bem, mas na verdade ela não chegou a existir, verdadeiramente. É tão remotamente impossível como se curar uma doença inexistente [não que o hipocondríaco não seja doente, mas não o tipo de doença que ele considera ter, e a cura que diz buscar].

Da mesma forma, os esquemas humanos podem auxiliar-nos, mas sempre devemos ter em mente que eles estão longe de resolver questões para as quais somos completamente inabilitados. E o que se refere à vontade oculta de Deus é ainda mais impossível, se é que há algo mais que impossível. Por mais exaustivos que sejam os esforços eles não passarão de sombras daquilo que realmente é. Por isso evito processos muito elaborados e complexos para definir algo simples, mas de uma simplicidade inatingível, e que seria melhor reconhecê-la como não definível pela linguagem humana.

UM EXEMPLO PRÁTICO 
Mas, a questão é, agora: Pode a vontade de Deus ser frustrada?

Em Atos 4.26-28 lemos: "Levantaram-se os reis da terra, e os príncipes se ajuntaram à uma, contra o Senhor e contra o seu Ungido. Porque verdadeiramente contra o teu Santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer"

Alguém pode aventar que temos aqui apenas uma predição. Que Deus, conhecendo o futuro, viu o que os homens fariam com o seu Filho. Mas sabemos que o texto não diz isso. Ele diz mais, muito mais do que uma simples “visão” divina:

- É certo que Pilatos, Herodes, os judeus e os gentios se juntaram contra Cristo. Interessante que todos eles colaboraram para a morte de Cristo, a qual não se deu por todos eles, no sentido de que Cristo não morreu por todos os homens, mas especificamente pelos eleitos, pela sua igreja, para trazer a Deus um único povo.

- É certo que eles, ao se levantarem contra Jesus, também se levantaram contra Deus. 

- Muito mais do que Deus tendo uma "antevisão" do que iria acontecer, ele decretou e determinou que Cristo fosse preso, humilhado e morto por eles.

- A "mão de Deus" é uma figura de linguagem que se refere ao decreto, à vontade, ao que Deus predeterminou que aconteceria, e não simplesmente "viu" algo que estava além do seu poder e da sua vontade. A mão de Deus nos dá a idéia de que ele conduziu todo o processo de forma que acontecesse, sem qualquer chance de não acontecer. Foi o que nos diz o profeta: “Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias; e o bom prazer do Senhor prosperará na sua mão. Ele verá o fruto do trabalho da sua alma, e ficará satisfeito; com o seu conhecimento o meu servo, o justo, justificará a muitos; porque as iniqüidades deles levará sobre si.” [Is 53.10-11]. Note-se que o evento da crucificação não aconteceu à revelia de Deus, mas em seus mínimos detalhes esteve sob o seu controle. De forma que o Senhor se agradou, e o mesmo Senhor viu o seu trabalho e se satisfez, representando uma obra conjunta da pessoa do Pai e do Filho e do Espírito.

- Temos de entender que a vontade de Deus ou é soberana, e por soberana eu digo um poder absoluto, sem restrições ou neutralizações, aquele revestido de autoridade suprema, potente; ou não é, e então o homem, caso possa subjugar a vontade divina, é quem detém o real poder. Mas sabemos que o homem é nada diante de Deus, e apenas cumpre os seus propósitos. 

- Certo é que eles planejaram, intentaram e executaram o plano de matar o Filho de Deus, e assim fizeram, e por isso foram culpados, e serão condenados. Eles não deveriam tê-lo feito, mas não havia como não fazerem. Entendam que a responsabilidade não está no fato do homem poder resistir, quando a sua natureza pecaminosa insiste em que ele não resista, pois não pode, mas no fato dele deliberadamente assumir o erro e praticar o crime. O crime é que o torna em criminoso. Se ele podia ou não resistir é outra história. Ninguém é condenado pela hipótese da resistência, se queria ou não, se era ou não capaz, mas por agir em oposição à lei. E ao fazê-lo, ele infringe-a, tornando-se culpado.


- De certa forma todos são culpados pela morte de Cristo, no sentido de que, qualquer um de nós que estivesse no lugar de Pilatos, Herodes e dos judeus e gentios gritaríamos também "crucifica-o!". Acontece que eles não se tornaram culpados e réus de morte a partir da crucificação do Senhor, mas como está escrito, eles, desde sempre eram culpados, pois "quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus" [Jo 3.18].

Em tudo isso o importante é saber que Deus é também Senhor da nossa vontade, ainda que não saibamos como isso se dá; certos porém de que, por mais que queiramos, ninguém é independente ou autônomo de Deus.

Notas: 1- Aconselho aos que ainda não fizeram, ler o texto "Deus não tem escolhas". Alguns pontos descritos aqui podem ficar mais claros. 
2- Aula realizada em 03.06.2012.
3- Baixe esta aula file.MP3

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 31: A vontade de Deus


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Por Jorge Fernandes Isah




INTRODUÇÃO

O que vem a ser vontade?... Muitos podem dizer que vontade é o desejo de se fazer algo ou a disposição para se fazer algo ainda que não se faça, por vários motivos. Na história do pensamento humano sempre se discutiu sobre o significado real de vontade e desejo, e sobre sua relação, chegando-se a tê-las como sinônimos, tal a ligação intrínseca existente entre elas e, em outros casos, afirmou-se que elas são duas "pontentias", de forma que a vontade pertence ao campo racional enquanto o desejo ao campo sensorial ou sensível. Há uma disputa entre a psicologia e a filosofia para definir melhor ou mais corretamente os termos; porém, aqui interessa-nos não apenas o desejo, como uma vontade irrealizada ou uma impressão, mas a vontade em um determinado curso de ação. Ou seja, a volição, que nada mais é do que a vontade como a força que inclina e move o homem a querer, fazer e a não fazer, em seu caráter moral.

Infelizmente, hoje em dia, não se discute a vontade como um princípio racional da ação, como o poder originário da alma a produzir manifestações do homem; nossas escolhas são motivadas por um apetite voluntário que nos leva a agir. O que nos faz responsáveis por nossos atos, visto te-mo-los escolhidos. Não entrarei na questão se a vontade é ou não livre, se ela sobre uma ação prévia ou coação que a motiva. Certamente que o homem, como ser moral, é responsável pelo que faz, seja lá qual for a sua motivação. Tanto Platão como Aristóteles entendiam que o termo vontade somente era pertinente ao se fazer o que se quer, e não ao que satisfaz. Essa era a distinção racional que consideravam, pois fazer o que se quer é fazer o que é bom, o que é agir racionalmente. Acontece que o homem age, na maioria das vezes, em prol do mal, e eles entendiam que assim se age irracionalmente, ao se fazer o que agrada, simplesmente. 



Entendo que essa é uma boa distinção, que pode explicar muitas vezes porque agimos pecaminosamente. Ainda que saibamos ser determinado ato pecaminoso, que nos leva a ofender a Deus e ao próximo ou a nós mesmos, nos dispomos a praticá-lo, indo contra a razão, a qual podemos chamar de consciência, que nos alerta do engano a se cometer. Mesmo que não conheçamos todos os riscos e implicações, temos sempre a capacidade de avaliar se o que está-se a praticar é certo ou não. Ainda que muitos digam não ter esse conhecimento, o que acontece na verdade é uma "cauterização da consciência", o abandono do senso moral, de forma que se apague do caráter os sinais que nos leva ao cuidado, à vigília que o conhecimento imediato nos revela quanto aos riscos da atitude que se vai tomar. É o abandonar-se à irresponsabilidade com o objetivo de não ser responsabilizado, nem de ser acusado, como se fosse possível viver num estado de inconsciência deliberada. O que se tem visto cada vez mais são os respaldos científicos, especialmente da psicologia moderna, de que muitos atos praticados pelo homem não têm como fonte a vontade deliberada ou determinada de se praticá-los. Com isso procura-se isentá-lo da responsabilidade, e se acaba por transferi-la a quem não tem controle sobre ela, visto ser o indivíduo o único capaz de decidir pela prática do ato ou não. Alegar que se foi coagido ou induzido ao erro em nada pode absolver o agente. Até mesmo um animal, como um cão ou um gato, percebe se cometeu uma bobagem ou não. Tenho cães que, ao passarem dos limites estabelecidos por mim, mesmo antes de eu descobrir a infração já é possível percebê-la na atitude "arrependida" do animal. Muitas vezes, tenho de sair pelo espaço deles procurando pela traquinagem até encontrá-la. Eles sabem que cometeram um "crime", e que por isso serão repreendidos. Ou seja, é quase possível dizer que eles têm uma mente mais racional do que muitos humanos. Que até mesmo os animais têm a noção do certo e do errado, guardadas as devidas proporções. E se não têm o Imago Dei, como nós, o que nós dá o direito de defender a irresponsabilidade? Como se os atos praticados não fossem originados pela vontade individual? Certamente que esse é um dos atributos divinos comunicado ao homem, e do qual o homem tenta, desesperadamente, se ver livre; de forma que assim ele se liberta tanto da responsabilidade moral como da sua dependência de Deus. Ao menos ele se imagina livre, em sua tola pretensão de liberdade. Um exemplo evidente de que a transgressão é consequência da vontade está relatado no livro de Gênesis, capítulo 4. 



Abel e Caim levaram ofertas para Deus, e ele se agradou da oferta de Abel e não se agradou da de Caim, cujo semblante lhe decaiu, por causa da ira contra o seu irmão. E o Senhor lhe disse: "Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar". E o que aconteceu em seguida? Caim matou a Abel. E Deus expulsou-o de diante de sua face, e amaldiçoou-o. De forma que o próprio Caim reconheceu: "É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada". Ao não ouvir o conselho divino, e dispor-se a fazer o que lhe agradava no momento, Caim decidiu-se pelo mal, e foi punido pelo seu crime. Segundo o parecer dos filósofos citados, Caim, ao não usar a razão, não foi capaz de ter vontade, mas o desejo irracional de matar e aplacar a sua ira com o sangue do seu irmão. Ele não dominou sobre o seu desejo, sabia o que não deveria fazer, mas decidiu fazê-lo porque foi do seu agrado. O Senhor nos diz quase a mesma coisa:

1) Caim deveria dominar o seu desejo; 

2) Se não o fizesse, o pecado jazia à porta; em outras palavras, ele estava em iminência de se concretizar; 

3) Sobre Caim seria lançada a culpa pelo seu desejo. 


Temos aqui o desejo de Caim como algo realmente iníquo, irracional, o pecado acalentado e realizado, a exaltação do eu diante de si mesmo, mas jamais inconsciente, pelo contrário; o próprio Caim estava seguro da sua violação; ele queria, como resultado do seu desejo insano, o assassínio, o sangue de Abel em suas mãos; o que o levou a não considerar injusta a punição que lhe foi aplicada por Deus; ele estava consciente de que era justa, assim como estava consciente do ato praticado, pois em momento algum ele teve o menor sinal de arrependimento, de remorso pelo crime cometido. Caim estava convicto, e mesmo disposto a arcar com as consequências do crime praticado. O que enuncia a sua decisão e obstinação em fazer o mal conscientemente. O que vale dizer que fortes emoções, profunda consternação ou ira, não são justificativas para que a vontade direcione o homem ao que não deve ser feito, ao invés de mantê-lo distante, conservando-o no bem que o fará aceito [e, por bem, também significa o afastar-se do mal]. Como ser moral, o homem deve se dispor à dominar os desejos provenientes da sua natureza caída, afastando-se do mal, procurando o bem, que será sempre realizar não a vontade imperfeita e iníqua do homem, aquela pela qual damos vazão ao pecado, mas buscar incessantemente fazer a vontade divina, a qual é perfeita, e pura, e santa. 

Tiago, em sua epístola, nos alerta de que "cada um é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte. Não erreis, meus amados irmãos". Concupiscência é todo o desejo imoderado, descontrolado, e foi por ele e para ele que Caim se entregou, gerando o pecado. E a morte foi a separação definitiva de Deus; e Caim saiu de diante da face do Senhor. 

A VONTADE DE DEUS
Deus tem vontade? Ou teria, vontades?[1]. Essa é outra discussão que perpassa os séculos, gerando mais confusão do que esclarecimentos. O homem, por suas próprias limitações e pelo desejo de ter todas as coisas explicitadas, como se tivesse o domínio sobre elas, e assim pudesse garantir algum mérito para si mesmo, não tem como compreender todos os aspectos que envolvem o ser divino. Ainda que muitos afirmem isso, há um esforço e empenho em não aceitar essa proposição, de forma que acaba-se trilhando o caminho perigoso de se inferir de Deus aquilo que ele não é. Como já disse anteriormente, muito do que é proposto não passa do reflexo daquilo que somos: soberbos e orgulhosos. Em relação a Deus, qualquer palpite, suspeita ou conclusão decorrente da nossa mente, e não daquilo que ele revelou, será uma armadilha para quem a defende ou expõe. Entender que o ser divino é inexorável, que é-nos impossível sondá-lo, e que o pouco conhecimento de que dispomos é fruto da vontade soberana de Deus, sempre circunscrito à sua revelação especial, a Bíblia, tornaria mais fácil a nossa situação. 

Com isso não estou reivindicando que se abandone os estudos e a meditação, que sejamos ignorantes e desconheçamos a Deus. Não é isso. Basta saber que há limitações, barreiras levantadas pelo próprio Deus, e de que elas são intransponíveis, ao menos nesta vida. É-nos assegurado que naquele dia, o dia glorioso do Senhor, nada perguntaremos. Talvez porque seja-nos revelado tudo instantaneamente pelo Espírito Santo; talvez porque não nos preocuparemos em questões que se colocarão irrelevantes diante da glória, esplendor e majestade divinas. E como esse é um ponto importante da ortodoxia, não há porque desprezá-lo. 

Como disse, se definiu entre os reformados alguns conceitos e divisões da vontade de Deus. Esquemas foram propostos e aceitos exatamente por conta da nossa limitação, na tentativa de se aproximar o máximo da verdade sobre o assunto. Mas fato é que não se pode falar de vontades em Deus. Ele tem uma única, imutável e eterna vontade. Alguns pensam que há um conflito entre o que Deus quer e o homem realiza, de forma que a Bíblia parece revelar que nem tudo o que Deus quer suas criaturas o obedecem. Mas seria isso verdade? Penso que não. Pois se estaria criando um problema ainda maior que atingiria o atributo da soberania divina. Ou Deus é todo-poderoso, como a Escritura revela, ou ele tem limitações. Por aceitar certas limitações é que muitos caminham para o liberalismo, panteísmo ou panenteísmo, e até para a descrença total. Invariavelmente ela inicia-se com a incompreensão da Bíblia, culminando na recusa em aceitá-la como a fiel e inspirada palavra de Deus. 

Portanto, em Deus não há vontades, nada além de uma única vontade. Acontece que ela se manifesta, aos nossos olhos de maneiras distintas. Veja bem, esse entendimento decorre da nossa deficiência, da incapacidade e limitação intrínsecas ao ser humano. Partindo-se da dedução, chega-se as classes de empregos teológicos de alguns termos, como vontade decretiva e preceptiva, antecedente e consequente, absoluta e condicional, dentre outras. Ainda que eu não aprecie esse tipo de classificação, para não parecer apenas "ranzinza" adotarei o que os calvinistas mais antigos chamaram de vontade revelada e secreta. Parece-me um esquema mais simples e bíblico, e que abrange de maneira mais eficiente a compreensão que se deve ter sobre o assunto. 

Para mim, Deus tem uma vontade apenas, mas que nos é apresentada em duas perspectivas diferentes. A vontade divina é aquela soberana, pela qual ele decretou todas as coisas, de forma que elas invariavelmente acontecerão como ele planejou. E dentro desse decreto está toda a criação: o universo, os seres angelicais, os homens, o mal, o pecado, a queda, os fatos mais corriqueiros e irrelevantes que se possam imaginar. Tudo veio à existência pela vontade divina, e por ela tudo subsiste. Não há como a vontade de Deus ser resistida ou anulada. Dentro do seu plano soberano e eterno tudo acontecerá conforme a sua vontade estabeleceu. É o que Jó diz: "Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido" [Jó 42.2]. Em outras palavras, Cristo nos diz a mesma coisa: "Aos homens é isso impossível, mas a Deus tudo é possível" [Mt 19.26]. É possível que alguém diga que a fala do Senhor se refere exclusivamente à salvação. Mas, pergunto: não poderia esse princípio ser aplicado a tudo? Haveria limites para a vontade infinita e eterna de Deus? Ou, como tudo o que se refere a ele, ela também é absoluta, necessária e essencial, e não pode ser restringida jamais pelo contingente? Qualquer análise da vontade de Deus a partir de alguma limitação que não seja o próprio ser divino [e aí entramos em outro problemão, pois Deus é infinito também em sua vontade] incorrerá no equívoco. Fato é que a vontade divina acontecerá infalível e invariavelmente, sem chances de não acontecer. 

Mais alguém pode dizer: como então Deus ordena que façamos algo, como cumprir a sua lei, e não o obedecemos? Não há uma flagrante oposição do homem, ao pecar, contra a vontade de Deus que abomina e ordena que não pequemos? 

É aqui que entra a distinção acima, a classificação que utilizarei sobre a vontade de Deus. Temos que Deus tem uma vontade, a qual compreende o que nos foi revelado e o que não foi. O que nos foi revelado está na Escritura, e qualquer homem tem acesso a ela [não quero dizer que todos têm acesso à Bíblia efetivamente, mas que existe a possibilidade de todos terem. Para que algo aconteça é necessário que ele esteja no "mundo das possibilidades", do contrário não existirá]. Moisés diz exatamente isso, ao referir-se à Lei: "As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei" [Dt 29.29]. Com isso não se quer fugir de eventuais problemas, mas constatar que existe um problema, e que nem todo ele é compreensível pois está retido na mente de Deus. Aquilo que ele ordenou, e que é a sua vontade expressa, nos foi revelado, e qualquer um pode se asseverar dele, confirmá-lo. Deus delineou na sua palavra aquilo que ele quer que façamos, como reflexo da sua santidade, e para nos apresentarmos santos diante dele. Acontece que o homem, por sua própria imperfeição, não é capaz de cumpri-la. Aprouve a Cristo fazê-lo por nós. Essa é a vontade revelada de Deus, e que está ao alcance de todos os homens [novamente, como possibilidade]. 

Porém, há o que não nos foi revelado, e que se pode chamar de vontade secreta ou não-revelada, que é do exclusivo conhecimento divino. Apenas ele a conhece, mais ninguém. Nem mesmo os anjos celestiais. Ela está por detrás do curso histórico pelo qual o universo vem trilhando, e que podemos resumir como sendo o propósito eterno de Deus. Não sabemos o que é, nem como se dará, sabemos apenas que ela existe. Ela é a parte do decreto eterno que, assim como Paulo se referiu ao ser divino, é insondável e inescrutável. Nenhum de nós é capaz de penetrá-la, nem investigá-la. E essa vontade divina ordenou todas as coisas, inclusive a desobediência humana. Do ponto de vista humano, ao pecarmos, estamos em desobediência a Deus, e contra a sua vontade revelada, o preceito ou mandamento. Em relação a Deus, cumprimos exatamente o que ele decretou eternamente, e realizando ou pondo em execução o seu plano, satisfazendo à sua vontade oculta ou secreta. 

Há algum tempo, expus o seguinte exemplo em uma conversa que virou texto:  

"Acho apenas que o termo 'desejo' não deve ser empregado. Ainda que Deus queira. É como o Pai que não deseja punir o filho, mas tem de puni-lo para o próprio bem do filho. Ele o ama e não quer que ele se perca, por isso o castiga, mesmo não querendo castigá-lo; ele o faz pela necessidade insuperável... No caso dos eventos maus, Deus os decreta, mas não os deseja, porém eles cumprem o propósito maior de revelá-lo e a sua vontade primeira: separar um povo para si por meio de Cristo... Por desejo quero dizer ter prazer, se deleitar, etc. Mas se desejo é querer, isso ele quer" [2]

Certamente não tenho hoje o mesmo entendimento que àquela época, ainda que concorde parcialmente com o que disse. Em linhas gerais, Deus quer uma única coisa, o cumprimento da sua vontade, do seu plano, e ele se dará através de meios que parecerão, à primeira vista, conflitar e se opor à essa mesma vontade, mas que não se opõem nem conflitam, antes estão subordinadas à vontade maior, aquela que não nos foi revelada. Com isso quero dizer que a vontade revelada é subjacente, dependente da secreta. 

Um outro exemplo é o da morte de Cristo. Pedro nos diz que Deus decretou todos os eventos, e que eles foram realizados por Pilatos, Herodes, os judeus e os gentios [At 4.26-28]. Qual era o decreto divino? Que seu Filho Amado, Jesus Cristo, fosse preso, humilhado e morto pelos homens. Entendo que Pedro, ao referir-se a judeus e gentios quis dizer que todos colaboraram para a sua morte, a qual, porém, não aconteceu por causa de todos, no sentido de que Cristo não morreu por todos os homens, mas especificamente pelos eleitos, pela sua igreja, para trazer a Deus um único povo. Como o profeta também diz: "Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias; e o bom prazer do Senhor prosperará na sua mão. [Is 53.10]. A vontade divina era de que Cristo morresse, mas isso implicaria em contradição com o 5o. mandamento, "não matarás" [Ex 20.13]? A Pilatos, Herodes, os judeus e aos gentios foi ordenado não matar. Mesmo assim eles mataram o doador da vida. Havia uma vontade de Deus para que os homens não matassem [considero o termo inadequado, pois reputo-o como preceito, ordem, o qual se encontra em conformidade com o ser santo de Deus], pois uma coisa é a vontade como um desejo, outra coisa é a vontade imperativa, como uma ordem a se cumprir incontestavelmente. Contudo, dentro da sua vontade soberana e suprema, foi-lhes ordenado crucificar o Justo. E qual era o objetivo maior? A redenção dos homens, a justificação que somente poderia vir pela morte do Redentor, assim como Deus havia dito aos profetas, milhares de anos antes; sem nos esquecer de que tudo tem como fim a glória de Deus. 

De certa forma, até mesmo na sua vontade revelada há um caráter "secreto", ao menos para a maioria dos homens, até que ela se cumpra. Muitos que se não consideram a autoridade divina somente a compreenderão diante do Tribunal de Cristo, que julgará bons e maus, justos e injustos; e, então aqueles que durante toda a vida desprezaram o sábio e santo conselho divino, expresso através da sua palavra, perceberão que aquilo que estava oculto para eles, havia sido revelado indistintamente, e agora lhes falava direta e pessoalmente, em forma de sentença. E temos outra implicação, a qual é: a vontade soberana e secreta estará sempre em ação, muitas vezes se misturando à vontade revelada, enquanto esta, nem sempre, fará parte necessariamente do curso histórico de muitos homens e nações. Quantos, por exemplo, jamais tomaram conhecimento do código mosaico ou da morte de Cristo? Com isso quero dizer que, no fim-das-contas, há uma vontade superior e mais elevada, em que todas as demais "vontades" estarão sujeitas e dependentes. 

O QUE O HOMEM DEVE PROCURAR? 
Mais do que entender os conceitos e formulações teológicas do termo "vontade divina", o homem deve estar pronto a obedecer a Deus, naquilo em que ele nos ordena ser obedientes. Desprezar o seu conselho é trilhar o caminho perigoso da rebeldia, em direção célere à condenação e ao inferno. Todos os homens são chamados a obedecer a Deus, a honrá-lo com suas vidas, e a adorá-lo como único Senhor. Isso é posto para todos, indistintamente, e por isso Paulo diz que todos têm o conhecimento inato de Deus, pelo qual ninguém poderá alegar inocência. Somos todos pecadores, iníquos e inimigos de Deus, e se ele ordena a obediência é porque não haveria outra forma de conciliação com ele. Porém o homem, por si só, está impedido de obtê-la, de se reconciliar com Deus. Aprouve a Cristo fazê-lo por nós. Como sumo-sacerdote e único intermediário entre Deus e os homens, ele padeceu para que fôssemos aceitos como filhos adotivos pelo seu Pai. Por isso a ordem é geral, para que todos se arrependam: "Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam" [At 17.30]. Do contrário, a ofensa a Deus persistirá, e aquele que permanecer nela será condenado, no dia determinado em que com justiça o mundo será julgado por Cristo. 


E a vontade de Deus para os homens é que sejamos como ele, santo. E ao seu tempo, ele fará dos escolhidos aquilo que não nos foi possível fazer por nós mesmos, cumprindo-se tanto aqui como lá, na eternidade, toda a sua santa e perfeita vontade. 

Notas: 1- Escrevi, há algum tempo, sobre Deus ter escolhas ou não, cujo texto pode ser lido em "Deus não tem escolhas". Creio que a leitura dele poderá ajudar no entendimento do que tentei explicar aqui.
2- Extraído do texto: "Reprovação, vontade e hipercalvinismo".
3- Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico em 27.06.2012.
4- Baixe esta aula em file.MP3

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 30: A bondade de Deus e o Salmo 23




Por Jorge Fernandes Isah


A bondade de Deus está manifesta não em ele nos livrar das lutas, dores e tristezas do mundo, mas no fato dele nos manter em paz mesmo nas tribulações, de permanecermos confiantes quando tudo está desmoronando ao nosso redor, de nos manter dispostos a lutar ainda que estejamos fracos, de resistir ao pecado e à incredulidade quando as dúvidas nos assolam. Deus é supremamente bom ao estar sempre conosco, sem jamais nos abandonar, mesmo quando nos sentimos perdidos e sós. Como está escrito: “Provai, e vede que o Senhor é bom; bem-aventurado o homem que nele confia” [Sl. 34.8].

A bondade de Deus em dar bens materiais ao homem pode ser percebida por qualquer um, mas mais do que isso, a sua presença, e estar diante dela, é que o torna essencialmente bom para com os seus filhos. Veja bem, a bondade de Deus não está naquilo em que ele dá, mas naquilo que ele é, e sendo, transfere e participa aos que escolheu participar. Deus é bom, do ponto de vista humano, por suprir nossas necessidades, por nos dar a vida, saúde, livrar-nos do mal, mas o ápice da sua bondade é nos fazer semelhantes ao seu Filho Amado, Jesus Cristo, o qual é bom.

No Salmo 23, o rei Davi compôs um hino de amor e gratidão a Deus por seu cuidado, providência, vigilância e eterna presença, que mesmo nas agruras, perseguições e dificuldades da vida, ele jamais se sentiria desamparado, antes tinha a certeza de estar protegido por Deus. O profeta reconhece esse atributo maravilhoso do Senhor, de que ele é bom. Através de imagens inspiradas e que remetem ao conforto, refrigério da nossa alma, e à certeza do zelo divino para com os seus filhos, temos uma doxologia à sua bondade.

A presença constante e incessante de Deus em nossa vida é o que o faz bom. De uma bondade especial que somente pode ser sentida por aqueles aos quais ele se entrega. Por isso, digo sempre que a maior dádiva de Deus para conosco é ele mesmo se entregar a nós, de uma forma tão maravilhosa que é impossível não recebê-lo como o favor máximo, majestoso e esplêndido que se pode ter. Sem mérito algum de nossa parte, Deus se entregou por nós e cuidou que o aceitássemos como o dom, o presente, insuperável.

É também um cântico de confiança, em que Davi demonstra conhecer profundamente aquele em quem depositou a sua vida. E isso nos leva a crer que somente aqueles que conhecem a Deus podem confiar nele; de forma que Deus se revelará apenas aos que ele conheceu eternamente. Este Salmo é completamente dedicado à bondade de Deus, em suas várias formas de se manifestar na vida daquele que foi feito santo pela obra de Cristo.

A ideia da presença do Senhor na vida do servo é constante. E aqui, ao que parece, Davi estava em uma posição difícil, provavelmente cercado por inimigos, numa situação de morte iminente, em um “beco-sem-saída”. E, ainda assim, ele foi capaz de compor este hino, glorificando a Deus, que é bom.

“O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”.  Temos a imagem de Deus como um pastor, aquele que cuida e protege as suas ovelhas, suprindo-as em tudo. Davi não somente se utilizou de uma forma poética ou retórica, mas quis dizer exatamente o que disse: o Senhor é o meu pastor; e, assim, reconheceu o cuidado de Deus para com ele, e de que era fruto da sua bondade. Somente quem é bom pode suprir o outro em tudo, e essa é uma característica que somente Deus tem, pois somente ele é capaz de saciar a necessidade mais básica do homem [se é que há alguma necessidade que se possa chamar de “básica”] até a mais exigente, sendo que em todas elas pouco ou nada podemos fazer para colaborar.

Infelizmente as pessoas têm apenas uma idéia material e imediatista deste verso. Não há nada de errado nisso, mas o erro está em se pensar apenas nisso, de que Deus é capaz somente de suprir nossas necessidades materiais. Mas ele cuida de nós de forma total, completa, sendo que as maiores necessidades do homem moderno não são materiais, mas da alma. De forma que ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, adultos e crianças, encontram-se enfermos, e a cura somente é possível através do Bom Pastor, Jesus Cristo [Jo 10].

“Deitar-me faz em verdes pastos... “. É uma imagem bucólica, tranqüila, reconfortante. Dando-nos uma ideia de segurança, de certeza em descansar mansamente sob os cuidados sublimes do bom Deus. Novamente, somente aquele que é bom pode dar ao outro a serenidade, a pureza e o descanso seguro.

“Refrigera a minha alma; guia-me...”. Mais uma vez, temos a imagem do descanso, o que nos faz lembrar do que nos disse o Senhor Jesus: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” [Mt 11.28-30]. Cristo é ao mesmo tempo aquele que nos refrigerará a alma, mas também ele é o caminho da justiça, as veredas da justiça, pelo qual fomos feitos justos e capazes de trilhar no terreno da justiça. Morrendo por nós, na cruz, ele se fez justiça para que fôssemos justificados e feitos justos diante de Deus. E Cristo se torna, assim, o nosso duplo descanso pois, ao descansarmos nele, descansamos de nós mesmos, e da nossa busca impossível pela justiça meritória.

“Ainda que eu andasse no vale da ...” O que é a morte? Durante muitos anos, décadas, fui afligido com a ideia da morte. Ela sempre me perseguia, como um inimigo a me fustigar intermitentemente, desde a mais tenra idade. Precisei muitas vezes me embriagar para conseguir dormir. A morte é uma certeza na vida, de que todos, um dia, morreremos. Porém há uma diferença: aquele que confia no Senhor não a teme, porque sabemos que ela não nos pregará surpresas, pois Cristo venceu-a, dando-nos a vitória [1Co 15.55-57]. O que mais me incomodava era a incerteza que a morte traria: se havia vida pós-morte, como seria essa vida, e em que condições eu a desfrutaria, se é que a desfrutaria. A morte, em si mesma, era uma conhecida, mas o que ela traria de conseqüências é que me atormentava. Essa ideia não mais existe. Com isso não quero dizer que a morte não possa trazer sofrimento e dor, mas de que Deus nos capacitará a atravessá-la de uma maneira confiante, porque ele estará sempre conosco, e o seu consolo estará presente, mesmo no momento mais doloroso e sofrido que se possa ter na morte.

A imagem de vara e cajado alude à disciplina, à correção, de forma que possamos ser conduzidos no bom caminho, aprimorados na santidade, e certos de que aquele a quem o Pai corrige esse ama, e se ama, a sua bondade está derramada sobre ele; e ainda que a correção não pareça ser uma alegria mas tristeza, o seu exercício produz um fruto pacífico de justiça [Hb 12.11]. 

Mas o profeta nos revela também que Deus nos chama, como o melhor anfitrião, a assentarmos na mesa para o banquete que ele nos preparou. Revelando-nos que somos íntimos de Deus, e nela, ele se alegra em agradar-nos com mais do que a comida e a bebida, mas com a sua presença. Os preparativos do banquete são provas da bondade divina, do seu cuidado e zelo, mas mais do que isso, ela nos remete à sua presença, à essência e à natureza santa, bondosa e perfeita do ser divino. Que pode ser reconhecida por qualquer um, em princípio, mas que é rejeitada pela maioria dos homens em sua insistente ignorância de se considerar autossuficiente e em um permanente estado de alienação, de rejeição da verdade. Para isso, se apegam à falsa realidade; à ilusão que não os deixam escapar da prisão que se autoimpõe.  

E é nesse contexto que a igreja tem um papel fundamental, como emissária da boas-novas, de que há cura para o sofrimento humano. Podemos agir de duas maneiras, as quais se complementam: a primeira, é suprindo as necessidades imediatas das pessoas, ajudando-as naquilo que lhes faltam. Mas não podemos nos esquecer de que a barriga cheia logo se esvaziará, e precisará novamente de algo que a preencha. E não devemos nos furtar a sempre estarmos atentos a cumprir a missão de auxiliar o próximo materialmente.

Contudo, não podemos nos esquecer de que a barriga cheia atenuará apenas uma parte do sofrimento humano, e, provavelmente, a parte menos significativa do homem. O Evangelho tem o poder de alimentá-lo e sustentá-lo naquilo que ele tem de mais importante e mais urgente: o seu relacionamento com Deus. O pecado, e a condição do homem de pecador, ainda que ele resista a admitir, sempre o deixará em constante angústia. O fato de muitos não pensarem nisso, de negligenciá-lo, é usado como um recurso para não se sofrer. Mas é um engano ao qual o homem é levado pelo pecado. Ele, esteja-se consciente ou não, sempre manterá o homem em angústia e sofrimento. O próprio fato de sustentá-lo em sua voracidade, com as conseqüências naturais que ele provoca, é a prova de que, mesmo na ostentação e na satisfação de todos os desejos materiais e carnais, o homem permanece angustiado e em sofrimento. O alívio físico não alivia a alma; mas o alívio na alma, o refrigério que Davi nos mostra, e somente possível em e por Cristo, é capaz de nos fazer compreender que a corruptibilidade da carne é algo aceitável, ainda que fruto da desobediência e do pecado, o que nos deve entristecer, mas que uma alma restaurada pelo poder de Deus resultará em um corpo incorruptível. O corpo saudável e que se deteriorará não pode garantir a saúde da alma, mas a alma saudável, transformada por Deus, assegurará um corpo igualmente saudável, transformado à semelhança do corpo do nosso Senhor.

E não é interessante que essa seja a resposta para a aflição humana? E de que, somente assim, podemos verdadeiramente ajudar e auxiliar os necessitados? Sejam eles materialmente ricos ou pobres? Porque o problema maior do homem não é o material mas o espiritual. Davi, cercado, ameaçado por seus inimigos, prestes a sofrer o ataque, encontrava-se me paz, no descanso que somente Cristo pode dar.

Devemos ajudar as pessoas como conseqüência de uma fé viva, mas sem jamais nos esquecer da mensagem do Evangelho, o qual cura a alma doente; e que se assim permanecer, doente, jamais ocupará um corpo são.

Mais uma vez repito, Deus é bom não naquilo que ele simplesmente dá, mas ele é bom em si mesmo, e isso é o que ele nos dá, a si mesmo, porque ele é bom. Sobretudo, somente quem o conhece pode reconhecer a sua bondade; e essa é a prova maior da bondade de Deus, deixar-se revelar e conhecer até pelo mais mísero pecador, ao ponto em que, cada um de nós, se alegre em reconhecer e dizer que Deus é "o meu Senhor e o meu Pastor".

Pode-se ter quase tudo ou pode-se ter quase nada, mas se você conhece a Deus e confia nele, você tem tudo.  

Notas: 1 - Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico em 20.05.2012
2 - Baixe esta aula em file.MP3

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 28: A bondade de Deus, e o mal




Por Jorge Fernandes Isah


INTRODUÇÃO

Bondade é a disposição natural para o bem, a qualidade do que é bom. E apenas Deus tem essa disposição em sua natureza, de forma que ele é completamente bom, de maneira que Deus não pode ser mau ou deixar de ser bom. Ele é bom, porque em seu ser não há qualquer maldade; o atributo da bondade não pode ser alterado, seja para mais ou para menos, porque Deus é a perfeita, infinita e imutável bondade, ela tem de existir em Deus sem limites ou medidas. Nele há simples, uniforme e infinitamente todo o bem. Como o salmista diz: "A bondade de Deus permanece continuamente" [Sl 52.1]; a terra está cheia da sua bondade [Sl 33.5]; e ainda: "Porque o Senhor é bom, e eterna a sua misericórdia; e sua verdade dura de geração em geração" [Sl 100.5].

A bondade inclui a benevolência, o amor, a misericórdia e a graça. Ela está presente na forma como Deus sustenta toda a criação, sejam anjos, homens, animais e a natureza. Todo o universo é a prova categórica da sua bondade para com as suas criaturas. E ela se manifesta na sua providência, em que todas as suas obras louva-lo-ão, "e teus santos te bendirão" [Sl 145.10]. Assim, o salmista diz que Deus, em sua bondade, dá o mantimento a todos no seu devido tempo, implicando no sustento e preservação. É por isso que o Senhor diz: "Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros, e vosso Pai celestial as alimenta... Olhai os lírios do campo, como eles crescem, não trabalham nem fiam; e eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles" [Mt 6.26, 27]. E até mesmo o ímpio não está isento de receber as bênçãos divinas, através da sua providência: "Porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos" [Mt 5.45].

Deus é bom, e somente ele é. Foi o que o Senhor Jesus disse ao jovem: "Por que me chamas bom? Ninguém há bom senão um, que é Deus" [Mc 10.18]. Não há o que seja contestado nas palavras de Cristo. Apenas Deus é bom. Os homens, por mais que sejam considerados bons, por mais que pratiquem a bondade, ela nada mais é do que uma ínfima e quase indelével amostra da bondade divina. Se temos algo de bom em nós, ele provém de Deus, o qual somos a imagem e semelhança, que, por causa da Queda, tornou essa imagem em quase um espectro indistinguível e indefinível. O pecado nos arrasta para uma condição oposta à bondade; ele nos faz trilhar o caminho mal, que é a antítese do caminho de vida, o qual Deus nos deu a conhecer na pessoa do seu Filho Amado. O pecado nos faz transitar na morte, na dor, no sofrimento, da amargura, mas, sobretudo, no caminhos erráticos da rebeldia e descrença. Dizer que o sofrimento e dor não decorre do pecado é querer tampar o Sol com a peneira. Mesmo que não seja por conta de um pecado individual e específico, elas são originariamente causadas por nossa natureza pecaminosa, pela Queda, pela quebra da ordem. Por isso, nenhum homem pode ser chamado de bom; nem mesmo o mais abnegado e dedicado homem a buscar a bondade. Aquele jovem rico não considerou o que dizia. Não ao chamar Jesus de bom, porque ele é bom, sendo o Deus encarnado. Mas em pedir algo que era incapaz de realizar. Ao perguntar: "Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?", ele demonstrou uma preocupação com a possibilidade de, por si mesmo, alcançar a salvação, ao mesmo tempo em que demonstrava desconhecer os reais significados tanto da sua condição como pecador, como da salvação e da impossibilidade do homem obtê-la por esforço próprio. A sua pergunta nem mesmo fazia jus à pessoa do Senhor Jesus. O seu pensamento estava errado em quase tudo que se relacionasse com a sua inquirição.

A alegada não divindade de Cristo, cogitada por muitos, a partir deste relato, é uma avaliação frágil e descuidada de quem a proferi. Cristo não disse que não era Deus, mas que apenas Deus era bom. Ele sabia que aquele rapaz não consideraria as suas palavras, logo, as desobedeceria, revelando a descrença em sua própria afirmação: "Bom Mestre". O seu erro foi querer algo que era-lhe impossível alcançar. Há, também, um certo ar de orgulho e soberba na sua pergunta: "que farei para herdar a vida eterna?". Sabemos que o homem nada pode fazer para mudar a sua condição de perdição. Como o Senhor disse aos apóstolos, um pouco à frente, a salvação para os homens é impossível, mas não para Deus, pois para Deus tudo é possível [v.27]. Esse jovem considerou de maneira errada que era capaz de obter a vida eterna. Mas ela estava muito distante do seu alcance. Apenas Cristo, o Bom Mestre e Pastor, poderia fazê-lo por ele.

E então, entra-se na questão da divindade de Cristo. Se Cristo não é Deus, como o homem pode ser salvo? A suposição é de que ele não se considera Deus ao afirmar que apenas Deus é bom. Mas é possível ler isso nas entrelinhas? Não. Essa é uma inferência completamente despropositada e equivocada. Pois, que diferença há entre o "Bom Mestre" proferido pelo rapaz, e a autoproclamação do Senhor em João 10.11? Ali ele chama a si mesmo de o "Bom Pastor". Com todas as letras ele diz: "Eu sou o bom Pastor" [numa referência clara ao Salmo 23, onde Deus é o "Bom Pastor"]. O que torna uma afirmação diferente da outra? Há diferença entre os dois "bons"? Não. Se Cristo é o bom Pastor, segue-se que ele é bom, por isso, Deus. Discutir a divindade de Cristo a partir da sua resposta ao jovem rico é impossível. Assim como é impossível questioná-la à luz da Escritura. O certo é que Deus é bom em sua unidade, mas na diversidade pessoal do Pai, do Filho e do Espírito Santo. 


A BONDADE DE DEUS, E O MAL

A bondade está refletida na criação, a qual Deus considerou muito boa [Gn 1.31]. É claro que não podemos dar o sentido de "muito bom" à criação significando cada item dela como bom. O ato divino de criar e de fazer todas as coisas é que me parece "muito bom"; creio que ela está mais ligada ao fato de o Senhor ter se agradado por cumprir aquilo que imaginou e determinou criar. É possível mesmo divagar um pouco e acrescentar que, em vista do decreto eterno, a criação foi o cumprimento bom, correto, apropriado, daquilo que Deus estabelecera eternamente em seu plano. Creio não ser um disparate afirmar que a execução do plano divino na obra de criação é que ele considerou boa. Já que ele, como o Ser supremo e perfeito, não poderia jamais criar algo ruim em conformidade com o seu projeto perfeito. E isso não tem nada a ver com a perfeição da criação, a qual muitos teólogos se referem. Se Deus criasse algo perfeito, do ponto de vista metafísico, estaria se autocriando, o que é impossível; visto ser Deus eterno, não haveria como criar a perfeição. O que temos é a assertiva do Senhor em se agradar com a sua obra, de executá-la perfeitamente em conformidade com o seu decreto e vontade. E, certamente, como a Bíblia nos revela, os planos do Senhor incluíam tanto o mal como as coisas ruins, sem que elas procedessem dele, fossem causadas por ele. O mal é sempre causado pela deficiência do agente, de forma que os anjos ou os homens caídos realizam o mal por haver em suas naturezas uma deficiência que os inclina a praticá-los. E essa inclinação é decorrente da natureza pecaminosa, que contaminou a todos, sem exceção, a partir da queda de Adão no Éden. O mal, portanto, procede dessa deficiência natural do homem [que já estava presente em Adão, senão ele não pecaria], mas de forma alguma está presente em Deus, porque ele é o ser supremo, como Tomás de Aquino dizia: Deus é o Bem Supremo ou Sumo Bem, onde não há imperfeição ou falta alguma, pois ele é, também, a suprema perfeição.

De certa forma, o mal metafísico está presente na criação. As imperfeições quanto aos seres pode-se ser percebida em relação a Deus, o ser perfeito. O homem, por exemplo, existe, vive, age e pensa. Uma pedra apenas existe, não vive, não age nem pensa. Nós, como seres criados à imagem e semelhança de Deus não atingimos a perfeição divina, o que é impossível, mas na escala da criação estamos mais próximos da sua perfeição; e, em relação às demais criaturas, somos mais perfeitos. Nesse sentido, tudo o que se aproxima mais do ser de Deus é "mais perfeito"; e também nesse sentido podemos dizer que Deus é o autor ou a causa do mal, mas do mal metafísico.

Acontece que o mal moral é aquele que tem de ser punido. E, nesse sentido, apenas os anjos e homens podem cometê-lo. E o que seria o mal moral? Ao meu ver, e em concordância com o que diz Agostinho, é a ausência do bem. Temos de entender que o pecado, em si mesmo, exercer uma desordem na natureza humana, resultando na supressão de todo o bem, impelindo-o às escolhas opostas e conflitantes com os preceitos divinos; o que o torna incapaz, por sua deficiência moral, de orientar-se na realização do propósito final de Deus: fazer o bem, ser bom. E ele, em conformidade com a sua natureza, ausente do bem, dispõem-se a realizar o mal.

Quando lemos Isaías 45.6-7, temos de entender que aquele mal ao qual o Senhor se refere não é outro senão a aplicação da sua Justiça, a sua ira, punindo o infrator pela transgressão, pelo pecado cometido contra o Deus santo e reto. Pois sendo Deus necessária e essencialmente bom, é impossível que ele faça o mal.

Alguns dirão que Deus não é bom porque há pessoas com fome, sede, sem vestimenta... crianças nascem mortas ou falecem prematuramente... e de que, em suma, há muita injustiça no mundo. Então, num mundo onde há dor, sofrimento, morte e injustiça, não é possível que ele seja governado por um Deus bom. Mas, pergunto, o que tem a ver as tragédias e dores do mundo com Deus? Não seria essa a culpa do próprio homem? Que ao se entregar ao pecado causou o caos e a degeneração na ordem de forma que houvesse a desordem? E essa desordem não trouxe somente a morte espiritual, mas a morte física, ou seja, a desordem que nos fez perder as qualidades da imortalidade, mas sobretudo, a boa disposição de todas as coisas, a harmonia em toda a criação, para sucumbir à confusão, o desalinho e a anormalidade? E não foram elas que culminaram nas doenças, limitações e fragilidade do corpo? Mas não somente do nosso corpo, mas de toda a estrutura do universo? Porque Deus é acusado do mal praticado por nós? Não é o que Paulo nos diz em Romanos 8.19-22, que a culpa do caos é do homem? De que toda a criação, sujeita à vaidade do homem, geme com dores de parto até agora, esperando que a criatura seja libertada da corrupção, "para a liberdade da glória dos filhos de Deus". Toda a criação espera a manifestação dos filhos de Deus, para se ver também livre da corrupção e da degeneração. Deus criou todas as coisas em ordem, o pecado levou-as à desordem, e ele está executando o seu plano para devolver novamente tudo à ordem. Por que então ele já não fez isso de uma vez?, pode dizer alguém. Ora, porque ele é Deus, e executará o seu plano segundo a sua vontade e no devido tempo estabelecido por ele. Nem antes, nem depois, mas no momento exato.

É claro que temos um aliado sinistro na obra de manter a desordem no cosmos: o diabo. Dizer que a sua participação não é efetiva no conjunto da obra que o homem realiza, e de que há uma conjunção de forças para perpetrar essa situação, ainda que o diabo nos veja como um inimigo desprezível e odioso, o seu próprio desejo de nos destruir e a toda obra divina, representa o caos do qual ele não consegue se livrar, sendo ele a causa da sua justa condenação e precipitação no inferno, criado para ele e seus anjos, e de onde jamais sairá depois do Juízo, onde estará em sofrimento eterno.

Mais alguém pode se levantar e dizer que a própria ideia de "sofrimento eterno" imposto por Deus aos rebeldes é prova de que ele não é bom. Mas essa pessoa se engana quanto à natureza divina, que também é santa e justa. Um mundo onde não há a punição para o pecado, o delito e a rebelião, seria um mundo injusto, como o que vivemos. Porém, Deus não o criou assim. E, no seu decreto, caberá a ele estabelecer novamente a ordem, aplicando a sua santa justiça e ira sobre os irregenerados. Deus, em sua perfeição, não pode abrir mão da justiça em prol do infrator. Como Justo Juiz cabe aplicar a pena sobre ele. Ainda pode-se dizer que a justiça de Deus é má, pois inflige dor e sofrimento. Contudo, ele alertou o homem das consequências da sua desobediência: "Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás" [Gn 2.17]. E elas vieram como resultado da transgressão, do homem considerar imprudentemente que a sua vontade era superior à vontade de Deus, dele desconsiderar a verdade, e relativizá-la como algo possível de se fazer mantendo-se em seu estado original. Mas veio a queda, e com ela a desordem e a degeneração, e as consequências estão aí para todos vermos. Por mais que o homem descubra as curas para velhas doenças, muitas delas persistem matando [pois até mesmo o remédio não é eficiente para todos], enquanto novas surgem, manifestando que o homem é incapaz de trazer à ordem as coisas, antes ele é a causa, pelo seu pecado, do caos quase absoluto. Com isso temos que o homem não é bom em sua essência, ainda que ele reflita-a parcial e esporadicamente, como fruto do "Imago Dei", das frações da bondade divina que nos foi comunicada.

Notas: 1- Textos bíblicos analisados em áudio: Mt 6.26-27 e Rm 8.18-23.
Aula realizada na EBD em 06.05.2012;
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quarta-feira, 23 de maio de 2012

Estudo da Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 27: A justiça de Deus



Por Jorge Fernandes Isah



INTRODUÇÃO
Não se pode falar do atributo da justiça de Deus sem relacioná-lo com a sua santidade. Tenho que Deus somente pode ser justo por ser absolutamente santo; e a sua justiça é derivada da sua santidade, não como um atributo isolado e independente [apenas para efeito de comparação, visto os atributos divinos se comunicarem plenamente em seu ser], mas como uma necessidade inevitável da sua santidade. É como se a santidade necessitasse de um complemento a fim de ser distinguida, identificada; seria, guardadas as devidas proporções, as impressões digitais que identificam Deus como o ser santo. Ela se afigura como uma consequência natural do ser absolutamente santo de Deus, ou seja, ele tem de ser justo, pois, se assim não fosse, iria contra a sua santidade. A justiça comprova que Deus é santo, e a sua santidade confirma a sua justiça [Sl 145.17]. Sem a justiça, creio que a santidade estaria incompleta; mas isso valeria para qualquer atributo divino, os quais se interligam e se complementam perfeita e maravilhosamente. Com isso não estou dizendo que exista uma ordem de precedência entre elas, que tivessem surgido em momentos diversos, pois, como sabemos, Deus não está sujeito ao tempo visto ser eterno, e o eterno não tem o seu caráter moldado ou privado pelo tempo, estando além dele. Os efeitos temporais não têm nenhum poder sobre Deus, por isso que todos os seus atributos são igualmente eternos como o seu ser é eterno.


Contudo, pode-se dizer que a justiça divina se aplica no tempo; e ainda que ela sempre existisse, deu-se a conhecer a partir da Criação, mais especificamente quando Deus estabeleceu os preceitos pelos quais o homem deveria manter-se obediente e fiel à sua lei, sem a qual não conheceria a santidade nem a justiça divinas. O que reforça o ensino bíblico de que a Criação, antes de tudo, tem por objetivo exaltar e glorificar o Senhor, e é através dela que Deus pode ser conhecido em seu esplendor e perfeição intocáveis.


O que nos leva a reconhecer que qualquer "justiça" fora dos padrões estabelecidos por Deus como justos são injustos. E o que determinará o valor da justiça não pode ser outra coisa além do próprio Deus, visto ser ele santo e não haver nenhum padrão de santidade fora dele. Até mesmo a santidade dos seus filhos adotivos é fruto daquilo que Deus faz neles, e assim podemos dizer convictamente que somos santos porque ele nos fez santos; somos santos porque ele é santo; e, finalmente, somos santos porque ele quis que assim fôssemos para a sua glória. Sendo que muitas vezes o mundo reconhecerá a santidade divina através da nossa santidade, numa glória impossível ao homem se não fosse pela vontade e obra do Santo e Justo. A mais tênue demonstração de justiça dos homens nada mais é do que o reflexo da justiça divina, sem a qual não há a menor chance de existir.

Outro ponto é que não se pode falar em justiça alheio aos preceitos santos estabelecidos na Lei divina. Apenas o Justo poderia elaborar e determinar o que venha a ser justiça; e qualquer tentativa de estabelecê-la à margem da Lei somente implementará a injustiça. Tem-se que no mundo moderno e pós-moderno, dogmas e certezas dão lugar ao ceticismo e à dúvida, num reconhecimento evidente da impossibilidade humana de constituir adequada e ordeiramente um padrão apropriado para se instituir a justiça. Na verdade, extemporaneamente, o homem vive de guerrear contra ela, pelo próprio senso de injustiça que traz em si, decorrente da sua natureza pecaminosa. Como se provou em sua mente que é impossível organizar independentemente um sistema justo, após rejeitar o bom conselho divino, coube à humanidade caminhar célere em prol de um sistema onde a injustiça se normatizasse. E o ponto de partida foi o abandono da Lei, e, por Lei, refiro-me a todos os enunciados feitos por Deus em sua palavra que coíba o pecado e puna o pecador; pois nada há mais injusto do que eles. Quando se afirma que a justiça é algo inteiramente subjetivo e as medidas do justo seriam variáveis de grupo para grupo ou até mesmo de pessoa para pessoa, temos que a medida do justo, dada por Deus, tornou-se ilegítima, e o homem encontra-se perdido em meio ao delírio de uma verdade e realidade meramente particular a conflitar com outras verdades e realidades particulares, que se alteram até mesmo em um único indivíduo; de forma que o que lhe parece justo hoje pode não ser amanhã e nem ter sido ontem. Fazendo-o cada vez mais escravo da sua própria injustiça.

Se reconhecemos que Deus é santo e justo, tem-se que a sua Lei também é santa e justa. Se ele é eterno e a sua vontade é eterna, também a Lei, como parte da sua vontade, é eterna. O mesmo vale para a eleição e redenção dos salvos. Não há contingência em Deus, nem poderia haver, pois se houvesse, Deus não seria Deus. Portanto qualquer afirmação de que um único preceito divino possa não ser justo, torna o seu acusador no mais injusto de todos os homens, pois a justiça, assim como a santidade, é um atributo inerente à sua natureza, sem o qual ele não seria quem é. Assim diz o salmista: "Justo és, ó Senhor, e retos são os teus juízos" [Sl 119.137].



Por outro lado, dizer que a justiça é uma virtude humana [como pensam teólogos humanistas e liberais] é negá-la como virtude divina; é mentir duplamente e ser duplamente injusto. Ainda que o homem tenha "momentos" de justiça, ela provém do Senhor. Por isso é um dos seus atributos comunicáveis, mesmo que o homem o exerça parcial, imperfeita e temporariamente. 



O TRATO JUSTO DE DEUS COM OS HOMENS

Neste ponto, faz-se necessário afirmar o que seja justiça. No Direito, se utiliza a frase de Ulpiano, jurisconsulto romano, para defini-la: "Justiça é a constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu" [1]. Parece-me vago e inconcludente essa definição, pois nem mesmo se sabe de quem deve ser a constante e firme vontade de dar, como definir o que é e o que não é do indivíduo. Podemos elencar muitas coisas como sendo o "seu", mas certamente essas coisas variarão tanto de pessoa para pessoa como de cultura para cultura e de tempos em tempos. Logo, é uma formulação subjetiva e inadequada, na incerteza de seu próprio conteúdo. Aristóteles diz que: "Uma vez que o transgressor da lei é injusto, enquanto é justo quem se conforma à lei, é evidente que tudo aquilo que se conforma a lei é de alguma forma justo". Os termos do filósofo grego parecem-me muito mais objetivos e mais próximos do conceito bíblico de justiça; a qual é, em suma, considerar justo quem está em conformidade com a lei, ou seja, aquele que é obediente e zela por ela; e também aplicar a lei quando alguém se rebela contra ela. Como a lei é a manifestação da vontade divina, todos os homens devem andar então em conformidade com a sua lei. 


Novamente frisarei que, para mim, a lei é todo o preceito que Deus estabeleceu e enunciou em sua santa palavra. Não apenas os mandamentos mosaicos na forma da letra, mas aquilo que ele inscreveu em nossos corações, a consciência do pecado que significa toda e qualquer atitude, pensamento ou desejo que vá contra a santidade divina. Paulo diz que "assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom" [Rm 7.12]. A lei é santa como reflexo da santidade divina, derivada dela, assim  também ela é justa, como o próprio Senhor é justo e diz a Israel:"E que nação há tão grande, que tenha estatutos e juízos tão justos como toda esta lei que hoje ponho perante vós?" [Dt 4.8]. Também é por ela que tomamos o conhecimento do pecado, e de que, ao cometê-lo, estamos em flagrante desobediência a Deus [Rm 3.20].

E é este ponto que nos interessa mais detidamente, a justiça relativa de Deus para com os homens. Por relativa não se quer dizer que é o oposto de absoluto, mas de exprimir uma relação na qual todos os homens se reportam a Deus como a autoridade suprema, e a quem todos estamos subordinados. Como diz o Dr. Heber Campos, "é a justiça que se manifesta no dar a cada um conforme os seus merecimentos" [2].

Antes de prosseguirmos, faz-se necessário alertar que Deus é o Senhor de toda a criação, e de que ele exerce o seu governo sobre bons e maus, justo e injustos, e todos os homens estão debaixo de suas leis. Afirmar a injustiça de Deus em nada ajudará o infrator. Ele é a autoridade máxima, e acima dele não há qualquer outra. Nem mesmo a vontade do homem pode demovê-lo de exercer o seu domínio e poder soberanos. Deus é Deus e, por isso, é quem faz as regras, sempre segundo a sua vontade santa, perfeita e reta, em conformidade com o seu ser absoluto. Quer se queira ou não, quer se esperneie ou não, o homem deve satisfação a Deus, e ele será recompensado e cobrado no devido tempo segundo o que fez.

É notório ao cristão bíblico que todos os homens nascem em pecado, e suas obras são indignas, e jamais nenhum de nós poderá reivindicar justiça com base em seus próprios méritos diante de Deus, visto que as suas obras sempre o condenarão.

Esse ponto é importante pois a definição de justiça relativa [aqui, especificamente, tratamos da sua subdivisão, a justiça remunerativa, aquela através da qual Deus recompensa os seres racionais, homens e anjos, segundo o que fizeram de bom], pode levar ao engano de se imaginar que Deus absolverá alguém ou o considerará inocente por alguma coisa que ele faça, por uma justiça própria e meritória. Não. Por ser pecador e miserável, todos os homens, sem exceção, estão debaixo da Lei e pecaram e serão por ela julgados, de forma que todo mundo é condenável diante de Deus [Rm 3.23,19]. Por isso Deus, em sua graça, misericórdia e providência, determinou que o seu Filho Amado, Jesus Cristo, fosse dado em expiação por muitos, para que fossem justificados diante dele, como prova do seu amor [Rm 5.8]. Não há outro meio ou forma do homem não ser condenado. A única justiça que o Senhor reconhece é a realizada pelo seu filho, na cruz, para todos e sobre todos os que creem [Rm 3.22]. E assim, justificados pela fé no sangue do Senhor Jesus, temos paz com Deus, e somos poupados, somos salvos da sua ira [Rm 5.1, 9], e alcançamos a reconciliação [Rm 5.11].



Temos que Deus somente justifica e absolve o homem através da morte de seu Filho e apenas por ela. Sendo a prova da sua graça e bondade para com  aqueles que ele amou eternamente, e pelos quais fez manifestar a sua infinita e gloriosa justiça, estando livres do juízo de morte e justificados para a vida. Pela obediência de um único homem à Lei de Deus, aqueles que também foram amados eternamente serão feitos justos [Rm 5.19]. Mas nada disso, como se vê, pode ser creditado ao homem, nem mesmo os atos bons que ele pratica, nem as boas ofertas que dá. Davi compreendeu como ninguém o que ele e o seu povo eram, e como careciam da bondade e providência divina para fazerem o que era bom aos seus olhos, e de que nem ele ou algum dos seus súditos tinham do que se orgulhar diante de Deus, visto que tudo que lhes era dado retribuir, era fruto daquilo que o próprio Deus dava-lhes: "Porque quem sou eu, e quem é o meu povo, para que pudéssemos oferecer voluntariamente coisas semelhantes? Porque tudo vem de ti, e do que é teu to damos. Porque somos estrangeiros diante de ti, e peregrinos como todos os nossos pais; como a sombra são os nossos dias sobre a terra, e sem ti não há esperança. Senhor, nosso Deus, toda esta abundância, que preparamos, para te edificar uma casa ao teu santo nome, vem da tua mão, e é toda tua" [1Cr 29.14-16].

Apenas pela sua vontade, e como cumpridor das suas promessas, Deus se faz devedor ao homem; não porque recebeu algo de nós, mas porque ele prometeu que nos daria segundo as condições que ele estabeleceu, e que realizou por nós. Temos a impressão de que cumprimos a sua vontade voluntariamente, como se não houvesse em nós nenhuma outra motivação além do desejo de servi-lo e honrá-lo, mas como seríamos capazes de dar algo a Deus que ele primeiro não nos desse? De certa forma, é engraçado que além de recebermos o suficiente para dar a ele, ainda seremos recompensados por isso, sendo que não há mérito algum em nós, e nem mesmo somos dignos de alguma honra. O que se revela é uma grande oportunidade para bendizê-lo, louvá-lo e glorificá-lo por tão grande graça e misericórdia e bondade para conosco, servos inúteis, que fazemos apenas o que devemos fazer e que nos foi ordenado realizar [Lc 17.10].

Mas, e o que acontecerá aos que não foram justificados por Cristo e por ele não foram salvos?



A IRA DE DEUS

A ira divina é a justa e perfeita manifestação de Deus diante do pecado. É a sua resposta necessária ao pecado, sem a qual a sua santidade e perfeição ficariam comprometidas. Veja bem, se Deus não se irasse e revelasse indiferença ao pecado, não seria Deus; ele não pode pactuar com a injustiça, sendo o Justo. A ira é uma das condições essenciais do seu ser e, portanto, é também uma perfeição divina, através da qual ele infligirá castigo aos que violarem a sua palavra e vontade. Para eles, não há misericórdia; ele não pode deixar de puni-los, de lançar sobre eles a sua severidade, tal qual o profeta diz: "O Senhor é Deus zeloso e vingador; o Senhor é vingador e cheio de furor; o Senhor toma vingança contra os seus adversários, e guarda a ira contra os seus inimigos." [Na 1.2]. Com isso, estou a dizer que o caráter divino, o seu ser perfeito, não o seria se em Deus a ira não se manifestasse. Ela é a resposta divina ao fato dele ser santo e justo.
  

O primeiro ponto é que a ira de Deus se manifesta sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, "que detém a verdade em injustiça" [Rm 1.18]. Acontece que a ira e o castigo divinos não fazem parte da pregação atual. Por uma visão distorcida de que os homens são bons em sua natureza e essência, muitos consideram falsos os versos bíblicos que exortam o homem a não se rebelar contra Deus, antes deve obedecê-lo, pois do contrário, a ira do Senhor estará sobre ele. Há um falso evangelho sendo pregado, e que tem levado muitos a manterem-se na impiedade, batendo às portas do inferno. Não é preciso que se cometa algum crime atroz para fazer parte desse grupo. O simples fato de não se sujeitar a um mínimo preceito divino, podendo ser, até mesmo, a mera rejeição da sua justiça, implicará na impiedade e injustiça. Deus tem de ser glorificado pelo que ele é, o Senhor de tudo e todos, a autoridade absoluta e perfeita em todos os seus atributos.

É interessante que as criaturas cada vez mais se consideram aptas a fazerem de Deus réu. Acreditam que estão num patamar tão superior que podem tecer críticas, zombar e escarnecer daquilo que nos foi revelado em sabedoria e retidão. Há um desejo crescente de se criminalizar a Deus, fazendo da sua palavra um simples livro de códigos imorais e desumanos. Mas, ó homem, quem és tu que replicas a Deus?, já dizia Paulo. Quem o fez senhor e juiz? Quem investiu-lhe da autoridade que julga ter? Novamente, temos o pecado se manifestando na mente e lábios dos que  se consideram, em sua vaidade e soberba, superiores a Deus. Podem não concordar abertamente com esse rótulo, mas o desejo latente de independência os faz amotinados e rebeldes. Essa tentativa de independência sempre significará a incompatibilidade com o que é santo e justo e a compatibilidade com o pecado e a injustiça, em que ambos se toleram mutuamente, e seus desejos se combinam e permanecem conciliados.

A ira divina é algo presente na Escritura, e o próprio Deus não se envergonha de proclamá-la [Dt 32.39-43; Ex 22.22-24; Rm 1.18]. Por que então temos brios em anunciá-la, ao mesmo tempo em que contemporizamos com o pecado? Penso que a ira divina e a certeza do seu juízo estão presentes em nossa consciência, como algo que Deus nos legou. Sabemos que ela é justa, mas a nossa natureza não se conforma a ela, por isso tenta negá-la ou ocultá-la a fim de não haver barreiras ao pecado, deixando-o agir livremente, sem restrições, e não sermos acossados pela ideia de uma merecida punição. O engano nos faz acreditar que Deus, em algum momento, se arrependerá daquilo que prometeu, e não cumprirá a sua palavra: de que todo o pecado será castigado e os pecadores sofrerão na carne pelo mal que praticaram. Deus é fiel em tudo o que promete, e não abrirá exceção para o derramar a sua ira. É o que o apóstolos diz: "Porque bem conhecemos aquele que disse: Minha é a vingança, eu darei a recompensa, diz o Senhor. E outra vez: O Senhor julgará o seu povo. Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo" [Hb 10.30-31].

Contudo, os cristãos podem irar-se?

Há uma ideia de que o crente deve ser "paz e amor". Este lema foi muito utilizado pela contra-cultura nos anos 1960, a era "hippie", em que as pessoas se preocupavam exclusivamente consigo mesmas, com o seu prazer, e em negar toda a cultura ocidental judaico-cristã. O pecado não era o cometido individualmente por cada um deles, seja no uso de drogas, no sexo livre, na ociosidade, na idolatria e culto a deuses pagãos, mas na sociedade e na igreja como mantenedores de uma ordem cristã hipócrita, em que se defendia a moral e a ética e se condenava o pecado, mas que não passava de um discurso, enquanto a maioria se entregava mesmo aos desejos da carne. Eles pensavam que escancarando ao mundo a sua própria impiedade, este mundo deixaria cair a máscara e se mostraria como realmente era. Ao invés de se empenharem na construção de um ideal verdadeiramente justo, tomaram o caminho oposto, como se colocar o dedo na ferida pudesse curá-la. Certamente não havia o menor interesse em cura, mas o empenho de se esfregar limão e pimenta na chaga. Não passando de outra justificativa para o pecar livremente e sem culpas. Em outras palavras, eles se especializaram em agir exatamente naquilo em que condenavam, a hipocrisia, pois com a desculpa de se "desnudarem" apenas serviam ao propósito dissimulado de se apegarem mais e mais ao próprio pecado.

Então é que entra a questão da ira, a qual é demonizada pela maioria dos cristãos. Quando muito, consideram-na uma prerrogativa apenas de Deus, estando vedado aos homens. Mas, é realmente isso? Paulo nos exorta a irar e não pecar [Ef. 4.26], indicando que não é todo o tipo de ira que se transforma em pecado. Um exemplo de ira santa nos foi dado pelo Senhor Jesus ao expulsar os cambistas e vendilhões do templo [Jo 2.13-17]. Mas, e para nós, quando é justo irar-se e não? Penso que há uma linha tênue que delimita a ira santa e a ira pecaminosa. Como estamos mais sujeitos a adentrar do outro lado da linha, não é prudente o estímulo ao irar-se. Facilmente nos iramos quando vemos uma injustiça. Quando vemos o pecado campear livremente. Quando a palavra de Deus é desprezada. Quando Deus é escarnecido e insultado pelos tolos. A Bíblia diz que todos eles, se não se arrependerem dos seus pecados, serão condenados e afligidos eternamente pela ira divina. E podemos deixar a vingança para o Senhor, como ele mesmo nos orienta, a descansar e confiar nele. Mas normalmente não nos iramos quando somos nós a cometer o pecado e a injustiça, antes nos tornamos condizentes com o nosso erro, com o de familiares e amigos. Contemporizamos, nos fazemos de vítimas, e encontramos as explicações mais espúrias para justificar o injustificável, e nos enganos em nosso próprio senso de [in]justiça. Ao invés de nos irar contra o próximo, contra o pecado alheio, por que não experimentamos primeiramente irar-nos contra o nosso próprio pecado e contra nós?

Entendo que o "irar-se" é menos uma ordem e mais uma concessão divina, enquanto o "não pequeis" é um imperativo. Na maioria das vezes, os motivos da nossa ira são ofensas e injustiças cometidas contra nós mesmos. Há uma nítida intenção de retribuir a afronta, de restaurar a honra. E não há como proceder assim sem ser levado a pecar, basta lembrarmo-nos das reações, imprecações e insultos que realizamos em nome de uma pretensa justiça. Pois nos ressentimos facilmente diante de uma provocação.

Portanto, entendo que o cristão não pode ser "paz e amor" em relação ao pecado, especialmente ao pecado pessoal, às tentações que se nos apresentam diariamente e que consentimos em presenciá-las, consumando o pecado. Essa é a nossa guerra, a nossa luta diuturna, na qual não podemos dar trégua, antes irar-nos e atacá-la francamente, pois ela é ofensa à santidade de Deus. Devemos deixar a justiça para o Senhor, e aqueles que ele estabeleceu como seus ministros, as autoridades que são seus instrumentos para castigar o que faz o mal [Rm 13.4].

Iremos pois, e não pequemos; é a ordem do Senhor.

Nota: 1- Em conversa com o pr. Luiz Carlos Tibúrcio, ele entendeu que Cristo, de certa forma, validou essa frase de Ulpiano, ao dizer aos fariseus: "Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus", de forma que, ao se fazer isso, aplica-se a máxima de justiça do jurisconsulto romano.
2- "O Ser de Deus e seus atributos", Dr. Heber Carlos de Campos, pg 341, Editora Cultura Cristã;
3- Aula realizada na EBD em 29.04.2012;
4- Textos analisados durante a exposição da aula em áudio: Gênesis 6 e 7 e 1Crônicas 29: 14-16;
5 - A foto ao alto, remetendo-nos à crucificação do Senhor, e vem de encontro à afirmação do apóstolo Paulo de que Cristo "para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" [1Co 1.30];
6- Baixe esta aula em file.MP3
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